Julho de 2007
Recife é uma cidade que dança. E esta dança recifense é ao mesmo tempo plural, eclética e homogênea, tendo o lado lúdico, a sensualidade, a frenética euforia, como os traços mais fortes do seu perfil. Partindo desta realidade, os bailarinos-coreógrafos, Kleber Lourenço, José W Júnior e Saulo Uchôa(1), decidiram personificar a cidade e traduzi-la em movimento, na coreografia intitulada Sobre Nossos Corpos, que foi apresentada na segunda temporada da Plataforma Recife de Dança Contemporânea- Ano II, no Teatro Arraial.
O trabalho é o resultado final de uma residência criativa que os autores-intérpretes participaram durante todo o mês de março deste ano, no projeto Dança Contemporânea(2) do Centro Apolo-Hermilo, do Recife. A criação é coletiva em todos os aspectos, concepção plástica, iluminação, trilha sonora e coreografia, compostos em uma equilibrada parceria entre os três jovens artistas. Nota-se em alguns momentos o estilo de um coreógrafo prevalecendo aos demais, talvez propositadamente, no intuito de construir um percurso cênico heterogêneo que deságüe em uma identidade poética única, exclusiva da cidade-dança. As seqüências iniciais mostram o aspecto mais físico deste corpo, explorando as ondulações típicas do andar, do falar, do ser recifense, características particulares de cada um funcionam para realçar o comum em todos: o jeito, digamos assim, curvilíneo, quente, doce e maleável desta metrópole-gente.
A relação com as águas e a própria movimentação dos rios e emaranhados aquáticos que compõem o Recife, fazem-se presentes nos corpos dos bailarinos. Neste trecho, a partitura de movimentos escolhida dá ao público, a impressão de um mergulho e, de repente, as formas humanas convertem-se em uma ondulada e mutante tábua de marés. Os ruídos de água que servem como trilha sonora nesta parte da coreografia, soam redundantes e desnecessários, um reforço aparentemente supérfluo.
Até aqui, o espetáculo tem um tom mais grave, mais denso que dificulta a empatia e compreensão da platéia, exigindo uma concentração extrema e chegando a cansar por alguns breves momentos. Porém, surpreendentemente, as seqüências seguintes, além de envolverem por completo os espectadores em uma interatividade pouco vista nas produções coreográficas atuais, acabam por dar significado a esta espécie de prelúdio de Sobre Nossos Corpos.
Como não poderia deixar de ser, a obra transpira uma acentuada urbanidade, enfatizada por elementos do cenário, pelo figurino casual e ambientada por um eficiente desenho de luzes, que nos trás a dança das horas na cidade, marcando a passagem do tempo e a conseqüente mudança das paisagens. Um Recife noturno, extremamente urbano e cinematográfico se revela em uma das mais belas e poéticas cenas da coreografia. A noite é representada por uma porção de estrelinhas ‘pisca-pisca de neon, from camelô’, e até o mesanino do Teatro Arraial é aproveitado para mostrar pernas nuas de uma provável figura andrógena, caminhando nas sombras, de saltos altos. Saulo Uchôa, sentado num banquinho posicionado no proscênio, fuma um cigarro lentamente e insinua um clima de orgia, suspense, boemia e sedução, entre tantas outras possíveis interpretações, puxando a cena para um olhar analítico sobre a vida pulsante de verdades e cicatrizes sociais sempre abertas, nas penumbras dos grandes centros urbanos, bem debaixo dos nossos narizes.
Desta forma, a obra ganha também um cunho social, lampejos de um posicionamento político ou, pelo menos, um alerta em relação aos valores reais inclusos nos diversos ‘recifes’ visitados pelos criadores para elaboração do espetáculo.
De forma lúdica, as cenas que se seguem, lançam questionamentos sobre os rótulos da dança recifense, os estereótipos das pessoas de Recife, os ditos cartões postais da cidade. E não pára por aí. O modelo de dança made in Recife, dos espetáculos pra turista ver, embalados pra presente, também é tema das reflexões propostas pelos coreógrafos. Até a própria ‘fórmula’ das coreografias contemporâneas é alvo de sátira, convidando público e artistas a pensarem sobre a dança que é produzida aqui, todos os conceitos, objetivos, regras e preconceitos nela embutidos.
Para lançar todas estas interrogações, Kleber, Júnior e Saulo recorrem às suas trajetórias artísticas individuais. Em uma cena hilária, Júnior, executa com propriedade passos de frevo em câmera lenta, aproveitando sua vasta experiência em dança popular, fruto da atuação no Balé Popular do Recife e outras companhias do gênero. Enquanto isso Kleber funciona como um encenador teatral ou mero animador, dirigindo a movimentação e expressões faciais do colega, quase como um adestrador de animais. Saulo está, primeiro sentado no palco fazendo bolinhas de papel, depois na platéia distribuindo as tais bolinhas e, em seguida, pedindo que junto com ele, todos joguem as ditas cujas no macaqueado passista que está ali se exibindo. Os criadores oferecem, assim, uma abordagem crítica da funcionalidade da dança, do sentido das produções artístico-culturais, contribuindo definitivamente na discussão dialética da cultura: afinal, espetáculo é entretenimento ou arte? Obra de arte ou produto cultural-comercial?
Os autores analisam os clichês, se posicionando nitidamente contra qualquer tipo de limitação ou rótulo, até mesmo os elencados como pré-requisitos para classificação de uma obra coreográfica na enorme e subjetiva ‘gaveta’ da dança contemporânea. Em outro momento surpreendente, eles trazem a discussão pra cena a bordo de uma bicicleta de publicidade, equipada com um rádio de automóvel e auto-falantes. ‘Com música ou sem música? Dança contemporânea se dança no silêncio. Mas o povo gosta é de zoada mesmo.’(3) Entre uma frase coreográfica e outra, eles dialogam diretamente, chegando a dirigir perguntas como estas, verbalmente à platéia, que já participa ativamente da cena, vivenciando uma relação íntima, pessoal e informal com os artistas.
‘Dança contemporânea tem que questionar. Aí o bailarino fica aqui fazendo essas coisas e o público questiona: que merda é essa?’(4) E o teatro é preenchido por gargalhadas cúmplices. Esta e outras questões são lançadas, enquanto eles traçam com qualidade técnica e competência uma coerente narrativa e vão desenhando a cara e o corpo desta cidade cheia de nuances e, por que não, de perguntas a serem respondidas. Louvável a coragem da auto-crítica, que expõe inclusive as dúvidas e imprecisões dos próprios criadores da dança recifense. Eles não tiveram medo da polêmica, envolvendo o público numa discussão que muitas vezes se desenvolve na surdina, camuflada, e que trás à tona conversas antes segredadas sobre os processos criativos, os caminhos coreográficos populares e eruditos, a intersecção entre eles e, principalmente as definições conceituais sobre dança e arte contemporânea. As respostas não são pretendidas pelo trio de coreógrafos, até porque serão sempre apenas possibilidades de verdades.
A experimentação de Saulo Uchôa encaixa-se no enfoque extremamente corporal, físico das investigações de José W. Júnior, e todos os elementos parecem ganhar uniformidade com a dramaturgia típica do trabalho de Kleber Lourenço. Trajetórias diversas, vocabulários variados, mas que resultam em uma linguagem única, provando que a criação coletiva é um caminho possível e funcional sim, apesar das diferenças estéticas, ideológicas e do risco de cair em armadilhas supostamente fáceis que resultam em colagens inconsistentes e superficiais. Eles driblaram todas estas adversidades e colocaram em cena um Recife cheio de porquês, genuinamente dançante e multifacetado, de personalidade forte e bem definida.
‘Quando se descreve um velho fato com um novo vocabulário, cria-se um fato outro. Dissolver os efeitos dos antes, para nesta leitura, desvestir os figurinos habituais.’ (5) No caso particular de Sobre Nossos Corpos, este outro fato revelou-se uma interessante linha de pesquisa, merecendo um aprofundamento, que irá, com certeza, contribuir para o desenvolvimento da dança cênica do Recife. O efeito retrato aproximou platéia e criadores de forma abrangente e irreversível. Os corpos do Recife viram o Recife virar corpo em outros corpos e naturalmente entraram na dança para nunca mais sair. Aí perceberam que já faziam parte dela. E este diálogo imprescindível com jeito de brincadeira, que toma rumos mais maduros em Sobre Nossos Corpos, é o grande mérito do trabalho de Kleber Lourenço, José W Júnior e Saulo Uchôa.
NOTAS:
1- Os três bailarinos-coreógrafos pernambucanos percorreram caminhos profissionais diferentes, no entanto atuam hoje como criadores de dança contemporânea e foram escolhidos para este trabalho por terem atuado na Compassos Cia. de Danças.
2- Em 2006, aconteceu a quarta edição do projeto Dança Contemporânea, do Centro de Formação e Pesquisa em Artes Cênicas Apolo Hermilo, reelaborada este ano por Arnaldo Siqueira em um novo formato, tendo como eixo temático os dez anos da Compassos Cia. de Danças. Entre as novidades, além de uma exposição do acervo da companhia, uma Residência Criativa, espaço destinado à concepção e criação de um novo espetáculo.
3 e 4- Frases ditas espontaneamente durante o espetáculo pelos autores- intérpretes, num clima de bate-papo informal de amigos.
5- Afirmações de Helena Katz, publicadas no prefácio do seu livro Um,dois, três. A dança é o pensamento do corpo, FID Editorial, 2005. O livro é uma edição da tese da autora, escrita em 1993, como trabalho conclusivo do Doutorado em Semiótica pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Helena Katz é uma das principais críticas e pesquisadoras de dança do Brasil, escrevendo atualmente para o Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo.
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Sobre Nossos Corpos