Em 2019 quando eu estava lendo um livro de filosofia tive uma ideia muito forte pra um espetáculo. E a imagem mais forte que me veio é que eu estaria dançando de motoqueiro. Precisava ser uma figura que trouxesse para a cena a imagem desse cavaleiro das máquinas, incrustado nessa armadura que serve pra proteger a pessoa de um acidente, mas que também auxilia no aumento da velocidade e fazer surfar na onda da modernidade, da velocidade, da idade das máquinas.

O livro era “O Tempo das Lebres: ensaio sobre um rebento contemporâneo”, do professor de filosofia José Antônio Feitosa Apolinário. Uma reflexão que ele faz sobre o viés moral da era moderna e contemporânea em relação à velocidade em diferentes esferas de nossas vidas.

Em 2024, depois da escrita de projetos, aprovação (o que tornou essa ideia concretizável), pesquisas, laboratórios criativos e muitas colaborações com outros artistas, as peças desse motoqueiro começaram a chegar, e a primeira foi o capacete. Eu e Filipe Marcena seríamos esses motoqueiros. E no final do ano estreamos uma primeira etapa dessa criação: três performances de rua. Este ano ainda virá a continuidade, em formato de espetáculo em um espaço fechado. Mas o que me chamou muito a atenção por esses dias foi o cheiro que esses figurinos impregnaram em mim, em minha memória olfativa.

Imagem bem próxima do visor de um capacete.

Foto de Anderson Stevens na performance “Lebres: Escape”.

Um dia desses eu estava numa loja de artigos para motoqueiros e fui percebendo como aquilo tudo cheirava a materiais sintéticos. E me lembrei de como o cheiro do capacete me tomou durante todo o processo. O cheiro de máquina, o cheiro da modernidade, o sufocamento da modernidade. Estar o tempo todo usando um capacete me colocou num misto de sufocamento e claustrofobia.

Impressionante como, naquele momento em que eu estava na loja, eu tive uma sensação física muito forte dos sentidos que a modernidade afeta um corpo. Uma armadura que cola a gente nesse modo de ser, nessa proteção do acidente iminente, mas também na proteção da interação com uma outra pessoa. E isso vai nos confundindo e fundindo com a própria máquina. Uma transformação de corpos em motores. Num paradigma instaurado pela modernidade em que nosso corpo é pensado como peças de um relógio, e nosso deslocamento é feito como se estivéssemos constantemente sobre rodas motorizadas que buscam cada vez mais velocidade. Uma rapidez que não nos sobra tempo de conviver com os próximos, e assim voltamos nossa atenção para os distantes, tentando tocar os outros por meio de máquinas de vidros telefônicos. Tudo parece nos proteger do mundo que está “fora” de nós. Tudo parece nos enclausurar nesse capacete da modernidade.

Fui percebendo que, além dessa imagem do motoqueiro ser muito significativa para o espetáculo, a vestimenta me traz um cheiro que, com certeza, irá mudar minha relação com essas máquinas, a cada vez que eu entrar num carro com “cheiro de novo”, num capacete de uma moto por aplicativo, num aparelho que acaba de sair de uma caixa etc. Isso ressignifica também minha relação com a performance, com o figurino, com a continuidade do processo criativo, que ainda terá sua estreia.

Muitos desses cheiros ainda irão se impregnar mais em mim, e talvez meu suor vire gasolina nesse processo.