*Texto escrito pelos artistas-pesquisadores Elis Costa, Filipe Marcena e Marcelo Sena como um dos resultados da pesquisa “Sobreposição: estéticas convergentes do corpo na história da dança e do cinema”, incentivada pelo Funcultura.

Foi em 2008 que a Cia. Etc., finalmente, conseguiu enveredar pelo fazer da videodança. Apesar de ter realizado um primeiro vídeo em 2001 quando, a convite de um publicitário, acordamos de adaptar um espetáculo para uma versão audiovisual, ainda não sabíamos dessa categoria “videodança” no ano de sua criação. Apenas em 2002, em uma oficina com Gícia Amorim, conhecemos o pensamento e características específicas do fazer da videodança, quando ela apresentou a parceria entre Merce Cunningham, Elliot Caplan e John Cage. Ali instaurava-se o escoamento de diversos desejos que já havia dentro da companhia, de como trabalhar a dança na plataforma audiovisual.

Desde então, algumas pessoas foram passando pela Cia. Etc. e contribuindo imensamente para a construção de nosso pensamento sobre videodança, sendo Breno César um dos principais colaboradores. Breno esteve na companhia entre 2008 e 2012 e já vinha de uma carreira com a realização de outras videodanças. Nesse caminho, Pernambuco conquistou, em 2010, a partir de uma forte pressão dos artistas da dança, uma linha de ação específica para a videodança no principal edital de financiamento público do estado, o Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura), sendo uma iniciativa pioneira no Brasil, até onde temos informação, no que diz respeito à existência de um investimento público específico para a videodança. Em 2012, fomos contemplados neste edital com o projeto “Pesquisa Corpo e Vídeo: manutenção de pesquisa da Cia. Etc.” e, em 2015, com o atual projeto, do qual este artigo é um dos resultados: “Sobreposição: estéticas convergentes do corpo na história da dança e do cinema.”

Enquanto no primeiro projeto consolidávamos um entendimento mais específico das possíveis categorizações de um vídeo como videodança, o que já vinha sendo discutido e estudado na Cia. Etc. desde 2008, neste projeto atual queríamos abrir outras possibilidades de pensar as conexões entre dança e cinema, além dos produtos já definidos como videodança. O desejo era ver como o corpo estava sendo configurado na história do cinema em paralelo com a história da dança.

Neste texto, vamos refletir sobre o processo criativo de DANÇA MACABRA, videodança que foi sendo construída durante esta pesquisa. Importante ressaltar que na escrita do projeto não havia ainda nenhuma indicação de conceito para esta videodança. Projetamos apenas a criação, sem descrever sequer algum tema ou questões estéticas, que foram surgindo e se impondo somente a partir do contato com o material levantado durante a realização do projeto.

O primeiro rebuliço

A última criação em videodança que a Cia. Etc. tinha realizado foi REBU, uma criação que também nascera de uma pesquisa realizada na companhia. Neste vídeo, a ideia inicial era utilizar cenas e corporalidades específicas de espetáculos anteriores do grupo e recriá-las utilizando somente os movimentos das mãos dos artistas-pesquisadores. Assim, foi surgindo outra corporalidade, mas sempre numa direção de levar a qualidade e o desenho dos movimentos dos espetáculos da companhia para uma única parte do corpo, a mão, numa espécie de metonímia.

Durante os laboratórios de criação, essa “transposição” ou “tradução” coreográfica foi se abrindo a outras interferências permitindo que as próprias mãos imprimissem outros desenhos e qualidades coreográficas que extrapolassem as referências definidas anteriormente. A mão que também segurava a câmera foi descobrindo outros ângulos, dinâmicas, enquadramentos que contribuíram ainda mais para a criação de uma videodança que passava a ter uma dramaturgia própria. A primeira ideia de criar uma nova obra a partir de obras anteriores era suprimida para dar espaço a outro processo criativo que se descolava dessa camada. REBU nascia de forma inesperada, sem estar mais atrelada às referências prévias. Na música, a ideia da referência ainda se manteve, mas encontrou-se outra questão que já permeava nossas discussões: os direitos autorais. Como estabelecer o diálogo com obras muito populares e como fazer referência a elas sem infringir as leis dos direitos autorais? Até que ponto as leis que hoje vigoram e protegem os autores são, de fato, eficientes e justas em diferentes casos de uso dessas obras? Provocando essa discussão, Caio Lima (criador da trilha sonora de REBU) propôs uma trilha em que, sampleando a música “The Time of my Life”, tema do filme Dirty Dancing, ele construiu outro modo dessa música aparecer, sendo claramente a música original, mas alterando a ordem das frases musicais, sobrepondo e distorcendo trechos. Deste modo, a questão que estimulou inicialmente a criação coreográfica acabou por escoar na música, enquanto a dança e o vídeo foram por outro caminho.

Uma primeira superfície

Com direção de Marcelo Sena e criação coletiva, OS SUPERFICIAIS estreia em 2015 e é o primeiro trabalho em formato de espetáculo da Cia. Etc. que, desde a sua criação, foi também pensado para ser apresentado na rua. Optar por um espetáculo que pode ser apresentado tanto numa caixa cênica como na rua foi uma estratégia utilizada pela Cia. Etc. para manter uma rotina de apresentações diante do colapso dos espaços culturais públicos na cidade do Recife e da insuficiência de incentivo por parte das últimas gestões municipais – crítica que também é retomada em DANÇA MACABRA.

OS SUPERFICIAIS, diferentemente da grande maioria dos espetáculos realizados pela Cia. Etc. no decorrer desses seus 16 anos de atividades, foi montado com verba pública pleiteada a partir do edital do Funcultura, o fundo de incentivo à cultura do governo do estado de Pernambuco. A conjuntura do estado permite que ações pontuais dessa natureza ocorram, mas não oferece estrutura para que as mesmas se mantenham. Espetáculos, grupos, companhias, coletivos e artistas independentes precisam valer-se de infinitas estratégias para superar tais condições e manter suas atuações, uma vez que teatros estão sendo fechados (nos últimos 6 anos, dois dos seis teatros municipais que Recife possui fecharam para reforma, sendo que um deles, o centenário Teatro do Parque, assim continua sem que qualquer previsão de fim das obras seja dada à população) e os que estão em atividade apresentam condições precárias de funcionamento (sem equipamentos de luz, de som, sem ar-condicionado, sem manutenção, sem técnicos) ou estão sendo utilizados indevidamente, ocupados por eventos de natureza outra que não cultural, promovidos ou permitidos pela própria gestão municipal. A estratégia da Cia. Etc., então, foi ocupar a rua. E mais: ocupar-se dela. E foi este mesmo pensamento que direcionou as escolhas das locações para DANÇA MACABRA.

Tendo como ponta pé inicial de sua criação as memórias do seu elenco, memórias essas compartilhadas, posto que a vida não é vivida na individualidade, mas num meio coletivo, que as subjetivações que nos constituem como esse trânsito de desejos que somos são partilhas de um sensível comum (se não a todos, a alguns; se não completamente, parcialmente; se não de forma positiva, pela sua negação), OS SUPERFICIAIS embaralha, muitas vezes, os papéis de público e artistas. A cada cena, que não necessariamente tem começo ou fim, que algumas vezes se repete com músicas diferentes, a Cia. Etc. convoca o público a se aproximar com suas memórias, com seu corpo, com suas reações e emoções.

Tanto as coreografias quanto a trilha sonora, construídas a partir de partituras existentes que são ora sobrepostas, ora recortadas, trocadas, modificadas em velocidade, misturadas, coladas, deslocadas, assumindo, assim, símbolos e significados outros inexistentes na sua “versão primeira”, continuam a discussão iniciada em REBU, sobre questões relativas ao limite da originalidade. Isso provoca a reflexão do que seria cópia, do que definiria algo como novo, instigando o pensamento crítico sobre o que nos é dado como verdade.

Trechos de coreografias do universo pop, de videoclipes, dublagens, assim como as oriundas de um campo mais apelativo, de cunho mercadológico, são apropriadas pelos artistas que atuam em OS SUPERFICIAIS, tais como combinações de movimentos realizadas no premiado vídeo musical Vogue (1990, da canção homônima da cantora americana Madonna, dirigido por David Fincher), trechos de coreografias diversas utilizadas por bandas de axé music baianas na década de 90 e nos anos 2000 (como É o Tchan, Olodum, Timbalada, Daniela Mercury) e movimentações inspiradas nas divas americanas como Whitney Houston e Beyoncé, entre outras inspirações das mais diversas e contraditórias naturezas. A Cia. Etc. assume tais abordagens como campo fértil para a pesquisa de movimento e com atribuição de transmitir ao público o desejo de repensar a própria dança, sua tradição, flexibilizando os pilares formais sobre os quais ela se ergueu historicamente no mundo das artes, o que não deve ser compreendido como um desejo de destruição da dança, mas do contrário: pretende-se, sobretudo, questionar, decompor e ampliar o seu discurso.

Enquanto na dança moderna a questão da originalidade/novidade era um pressuposto básico, na dança contemporânea essa questão perdia espaço para dar voz ao modo de encenação e como os elementos postos em cena se combinam, recombinam, dialogam, propõe outros significados a partir de novas contextualizações, fazendo com que os próprios códigos do espetáculo sejam “ressignificados” e colocados em uma ampla possibilidade de leitura, o que caracterizou grande parte das obras de arte contemporânea, que questionavam a si próprias como linguagens. Desta feita, OS SUPERFICIAIS aponta um novo horizonte à Cia. Etc. para além da discussão sobre original e cópia: um horizonte que observa a utilização de trechos coreográficos e musicais já existentes em novas obras como citações, como uma busca por uma performatividade da memória (de modo a torná-la outra obra, outra criação independente), como uma busca por uma outra historiografia da dança até. Isso seria, então, aprofundado na próxima pesquisa e criação da companhia, seja qual fosse.

O corpo no cinema

O processo criativo seguinte em que enveredamos foi novamente a de uma videodança, que deveria ser criada a partir da pesquisa SOBREPOSIÇÃO. Como metodologia de pesquisa, fizemos um apanhado da História do Cinema observando como o contexto histórico ecoou e formou estéticas e gerações de artistas. Tal recorte foi feito por Laécio Ricardo (professor de História do Cinema e coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da UFPE), que jamais propôs trazer uma ideia fechada e definitiva de história do cinema, e sim, a sua própria perspectiva sobre ela. Baseado em sua timeline afetiva, Laécio sugeriu uma lista de filmes importantes para entender o zeitgeist de cada época que o Cinema viveu em sua jovem existência e também o pensamento de cineastas e movimentos que filmaram para contestar, subverter ou sacudir o status quo.

Nessa primeira fase da pesquisa com Laécio, estudamos e assistimos a algumas obras que nos influenciaram fortemente na construção da videodança. O conceito de deambular, ou andar à toa, visto enfaticamente em filmes europeus do pós-guerra como Alemanha Ano Zero (Roberto Rosselini), A Aventura (Michelangelo Antonioni) e Acossado (Jean-Luc Godard), mas também em obras do Primeiro Cinema (como em Limite, de Mário Peixoto) e do Cinema Contemporâneo (Vive L’Amour, de Tsai Ming-Liang), foi algo que acabou se tornando o cerne da estrutura de DANÇA MACABRA. Nesses filmes, personagens vagueiam por ambientes devastados, inóspitos, hostis ou até familiares, mas com certo distanciamento, em longos passeios existenciais que revelam por si só seus sentimentos de não pertencimento, de frustração, de falta de sentido. Em DANÇA MACABRA, cinco pessoas que não se conhecem partem numa deambulação dançada, causada por uma cidade que aliena seus residentes. Só que o vazio existencial criado pela cidade é preenchido pelo movimento que resiste, sem um rumo geográfico, o rumo sendo o próprio ato de se movimentar por Recife.

Numa análise do cinema como corpo, corpo este que não é necessariamente o do(a) ator/atriz, mas o conjunto de ferramentas e elementos que formam o corpo cinematográfico (o(a) ator/atriz, a câmera, os movimentos e enquadramentos desta, a luz, os figurinos, a direção de arte, o som, a música, a mise-en-scène, a montagem, a textura da imagem, a continuidade, a janela do filme, o suporte), pudemos analisar como certos fatos da História do Cinema e da História do mundo fizeram brotar estéticas em filmes que, fazendo parte ou não de um movimento organizado, dialogavam com sua época. As imagens brutas, atuações naturalistas e o cenário real do Cinema Neorrealista italiano que refletiam um país e um povo destroçado pela Segunda Guerra Mundial; a rebeldia iconoclasta antiliterária e os experimentos radicais da Nouvelle Vague francesa, que ia de encontro ao cinema estabelecido como “de qualidade” e que estimulou novas formas de produção, nascendo daí técnicas como a montagem jump cut em toda sua fragmentação temporal; o cinema de Chantal Akerman, que dilatou o tempo através de longos takes estáticos e nos fez acompanhar o cotidiano da personagem-título de Jeanne Dielmann quase em tempo real, tornando o corriqueiro e pequeno ato de esquecer um botão do robe aberto num motivo de sobressalto e tensão no espectador. Esses e os vários outros corpos do cinema refletem o mundo e se refletem entre si, criando ondas e se expandindo em constante transformação.

Numa segunda fase dessa investigação histórica e estética do cinema, Filipe Marcena (formado em Cinema e Audiovisual e também orientador da pesquisa) trouxe outra perspectiva para a pesquisa: a dos gêneros cinematográficos. Ao investigar a definição dos gêneros e o que faz um filme ser categorizado num deles nos deparamos com um conceito bem interessante para o pensar videodança. Em Film Genre: From Iconography to Ideology, Barry Keith Grant diz:

“[…] diferentes gêneros são designados de acordo com critérios diferentes. Gêneros como o filme de crime, a ficção científica e o western são definidos por locação e conteúdo narrativo. Já o horror, a pornografia e a comédia são definidos ou concebidos em torno do efeito emocional de um filme sobre o espectador. Linda Williams (2003) se referiu ao horror, ao melodrama e ao pornô como ‘gêneros corporais’ por causa da forte resposta física – medo, lágrimas e excitação sexual, respectivamente – causada por cada um deles.” (tradução nossa)

Baseado nos textos de apoio e em discussões sobre os gêneros que são nomeados a partir das reações que eles causam no público, foi acordado nessa pesquisa a existência de cinco gêneros corporais: o melodrama (provoca lágrimas), a comédia (risos), o erótico ou pornô (excitação sexual), o horror (medo) e o filme de ação (adrenalina), embora esse último permita outros significados mais complexos. Cada um desses gêneros se utiliza das ferramentas do cinema para provocar no corpo do espectador sensações específicas, sendo classificados como bons ou ruins dependendo do poder do efeito proposto pelo gênero em que ele se insere ou foi inserido. Decidimos trabalhar com os gêneros corporais em DANÇA MACABRA como uma forma de modular a experiência da perambulação dançada dos personagens e também do espectador. Os movimentos e coreografias, que são pré-existentes (isso será abordado mais à frente), são encenados em locações específicas com a intenção de provocar não só significados poéticos, considerando a situação política e social do Recife, mas também sensações físicas vitais que trazem humanidade à experiência fílmica e aos dançarinos na tela.

O corpo na dança

Desde o início desta pesquisa, as obras de dança acabaram sendo abordadas a partir de seus registros em vídeo, o que já coloca a apreciação da dança numa mediação por outra linguagem: o audiovisual. E aqui cabe ressaltar o quanto já colocamos essas questões na própria análise destas obras. Apesar de alguns pesquisadores terem visto muitas obras ao vivo e presencialmente, muitas delas foram revistas em vídeo, e foi desse compartilhamento que nos valemos para seguirmos com referências em comum na busca pela relação entre dança e cinema. Desta forma, espetáculos filmados foram formando um acervo de imagens de criações, assim como diferentes formas de registro. Assistimos juntos ao Lago dos Cisnes (coreografado por Rodolf Nureyev); Night Journey (de Martha Graham); algumas danças tradicionais brasileiras apresentadas por Antônio Nóbrega e Rosane Almeida; trechos de espetáculos de Butoh de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ôno, pelo documentário Dance of Darkness; Ballet for Life (de Maurice Béjart); e trechos de espetáculos de Kurt Jooss, pelo documentário sobre a sua vida em Considerações Sobre o Amor, o Poder e a Morte; entre outros.

As videodanças também entraram nessa fase da pesquisa como oportunidade de conhecer importantes trabalhos de criadores e criadoras de dança, como Beach Birds For Camera (Merce Cunningham/Elliot Caplan); Balé Triádico (Bauhaus/Oscar Schlemer); Amelia (La La La Human Steps) e obras de videodança do DV8.

Na orientação sobre a história da dança, decidimos não seguir uma ordem cronológica, nem uma linha “evolutiva” da dança. Isso a fim de abrir possibilidades de fazer paralelos entre diferentes danças e épocas, tentando investigar as corporalidades emergentes em cada tipo de dança que ia sendo construída, não apenas como coreografia, mas também como encenação, ao perceber os diferentes modos de uso do espaço, da trilha sonora, cenários, figurinos e a sua relação com o público.

A escolha por não seguir uma linha tradicional histórica da dança também privilegiou as criações em dança na cidade do Recife, principalmente, por meio do acesso a muitos registros em vídeo de espetáculos no Acervo RecorDança, que foi de fundamental importância para o acesso a obras que já não são apresentadas, como: Pássaros (Compassos Cia. de Danças), Festa da Pedra (Zdenek Hampl), A Demanda do Graal Dançado (Grupo Grial), assim como as videodanças Elástico (Lírio Ferreira e Paulo Caldas/Realização do Grupo Cais do Corpo) e Lua Cambará (Marcelo Pinheiro/Coreografia de Zdenek Hampl).

Neste primeiro momento, o que guiou nossa investigação foi a relação visual, principalmente, nos momentos em que tentamos traçar paralelos entre obras da dança e do cinema. Mas o passo seguinte foi experimentar no próprio corpo algumas técnicas de dança, a partir de experiências dos integrantes da companhia, propondo alguns “passos” e também alguns estados corporais, para irmos delineando o que o corpo que dança também constrói como informação estética; trazendo a fisicalidade para o centro da discussão; bem como a relação de cada um com o próprio peso, espaço, tonicidade muscular; e que emoções cada dança causava.

Com a entrada da questão dos “gêneros corporais” abordados nas aulas de história do cinema, começamos a experimentar improvisações que buscassem provocar as sensações de cada um desses gêneros (melodrama, comédia, erótico, horror, ação). Percebemos que algumas movimentações poderiam causar sensações físicas diferentes da esperada, o que nos alertou para repensarmos as relações que já havíamos feito entre diferentes estéticas da dança e do cinema. Uma relação que se pautava, inicialmente, apenas no aspecto visual das obras.

Começávamos a perceber outro modo de relacionar essas duas artes: pela fisicalidade proposta pelo corpo em cena/na tela, mas também pelo corpo que vai sendo construído a partir dos elementos do audiovisual. Enquanto na dança o corpo se torna evidente pela presença física de quem dança e de quem assiste, no cinema ele parecia extrapolar a representação de si próprio (como corpo humano) na tela, passando a ser constituído por outros elementos visuais e sonoros.

Convergências

Mesmo que em pesquisas anteriores já houvéssemos percebido que a dança na videodança não acontecia apenas no corpo de quem dança na tela, mas também na movimentação da câmera, no ritmo da edição, a questão do corpo na atual pesquisa começou a nos provocar em outro modo de percepção. A fisicalidade do corpo no cinema e na dança não se direcionava ao “movimento dançado”, como na videodança, mas a um “estado de presença” do corpo, de um estado corporal, estados corporais. Isso nos fez reavaliar a questão primeira da pesquisa: quais as convergências estéticas “do corpo” na história da dança e do cinema? E que corpo era esse que estávamos colocando em questão para esta pesquisa?

Enquanto, na dança, a presença do corpo e de seus estados corporais são perceptíveis na relação cinestésica que se dá quando dois corpos entram em contato, visualmente, sonoramente ou fisicamente; no audiovisual, a construção desse corpo foi-se mostrando muito além do que a representação de um corpo humano na tela. Analisando os filmes, os vídeos de dança e videodanças, fomos percebendo que no cinema essa comunicação cinestésica “corporal” vai sendo construída por todos os elementos do audiovisual, como a textura da imagem, a relação da imagem com os sons, os cortes, o movimento da câmera, o uso das cores, o tamanho da projeção, o local onde acontece a exibição, elementos que já havíamos identificado nas questões da videodança. Mas, na videodança, todos esses elementos eram analisados como pensamento coreográfico. Aqui a questão era a “representação” do corpo, estando ele imerso num pensamento coreográfico ou não. E é aí que a pesquisa encontrou um ponto importante de descoberta sobre as possibilidades dessas convergências.

Mais do que encontrar fisicalidade dos corpos humanos da dança e do cinema, partimos agora em busca de que corpo poderíamos encontrar no cinema, mesmo sem a presença de um corpo humano na tela.

Visitamos novamente aqueles filmes assistidos durante toda a pesquisa e fomos buscando reencontrar esse corpo que parecia estar dado incialmente, mas que estava subliminarmente oculto da nossa percepção. Após isso, os próprios registros de dança e videodança passam a ser vistos numa outra relação de fisicalidade.

No momento dessas constatações e análise do que havíamos pesquisado até ali, da questão dos “gêneros corporais” e desse outro modo de perceber o corpo na história do cinema, surge a ideia da videodança que buscávamos criar: um corpo que passeia por essa história, não apenas como pensamento coreográfico e estados corporais, mas também como presença física que vai sendo construída pelos elementos da linguagem audiovisual.

Escolhendo usar uma alegoria artística do final da Idade Média sobre a universalidade da morte, chamada de Dança Macabra ou Dança da Morte, e também sobre uma possível epidemia de dança que atingiu muitas pessoas dessa época, levando-as a dançar até a morte, nossa videodança vai encontrando um caminho de criação que lança mão de várias questões já existentes na companhia, citadas no início deste texto (como o direito à cidade e autoria artística) para traçar outra história desses corpos, contada na sua relação com o espaço que ocupa na cidade, na dança e no cinema.

Num estado potente de contaminação, também numa relação cinestésica (onde um corpo passa a sentir e, até mesmo, a reagir em conformidade com o outro corpo que está ao seu alcance físico, visual ou sonoro), DANÇA MACABRA faz um grande passeio por várias referências à história da dança e do cinema, deslocando diferentes elementos que formavam inicialmente cada obra referenciada para abrir outros sentidos sobre o corpo, a dança, o cinema e a videodança.

FICHA TÉCNICA DA PESQUISA
Coordenação da pesquisa: Marcelo Sena
Pesquisa: Elis Costa, Filipe Marcena, Germana Glasner, José W Júnior, Marcelo Sena e Renata Vieira
Orientação de História do Cinema: Filipe Marcena e Laecio Ricardo
Orientação de História da Dança: Marcelo Sena
Stills: Germana Glasner
Arte gráfica: Raul Kawamura
Produção: Hudson Wlamir
Assessoria contábil: Embracon
Realização e Assessoria de Imprensa: Cia. Etc.