Por José W Júnior*
Permitam que seus corpos se abram, permitam que seus corpos sejam essa câmara de ressonância.
Evelyn Glennie.
Minha experiência com o som sempre esteve relacionada com a música, de acordo com as ideias e regras convencionais que regem o senso comum quando falamos ou pensamos em dança, ou seja, para podermos dançar, os movimentos precisam ser embalados por uma música ou um som. Precisamos seguir os ritmos, as dinâmicas, os compassos, etc., etc. Eu, egoísta, a partir do momento em que comecei a estudar a dança, voltei meus olhos para o corpo. Nesse caminho, dirigi um espetáculo de dança, fiz alguns solos e coreografei para alguns outros artistas, além de realizar três pesquisas com a Cia. Etc. O uso da palavra “egoísta” dar-se porque, durante este percurso e algumas pesquisas realizadas, acabei por segmentar esse corpo em partes e esqueci o “todo”. Mergulhei nos ossos, nas articulações, nos tendões, nos músculos, na pele e, por sua vez, ignorei (talvez por uma questão de necessidade artística) os sentidos; os mais importantes para um profissional da dança: a audição, o olfato, o paladar, o tato. No entanto, agora no final de nossa quarta pesquisa – Audiodança: A ventura do Corpo no Som que Dança –, olho um pouco para trás e percebo o quanto tive medo. Muito medo! Explicarei os porquês; tentarei elencá-los.
Medo porque nunca consegui dar aulas de dança seguindo uma música. Medo porque nunca consegui dar uma aula ou coreografar seguindo o compasso certo. Medo porque nunca conseguia perceber o ritmo da música. Medo porque nunca entendia a dinâmica que uma música ou um som estava me propondo.
Para um profissional, que é formado em dança, assumir esses medos é muito difícil. Conseguem entender?
Porém, isso não é um privilégio meu; não consigo ver um mérito nisso. No entanto, vejo janelas abertas, vejo horizontes se abrirem, vejo caminhos e possibilidades que se colocam a minha disposição. Acredito, hoje, que esses são os reais ganhos de uma pesquisa: perceber outros caminhos e possibilidades.
Como a pesquisa me tocou? Como vibrou em mim?
No início da pesquisa, nada ainda fazia sentido para mim, achava que estávamos rodando em círculos (sem uma relação cíclica); parecia que saíamos de um ponto e voltávamos para o mesmo ponto, para as mesmas ideias, para os mesmos questionamentos. Tolinho eu! Pois, qual a pesquisa que não passa por essa crise?
Nesse instante, voltei para meu corpo e perguntei:
– O que o corpo de Júnior quer dessa pesquisa?
E meu corpo respondeu:
– Júnior, só ouça!
Na continuação da pesquisa, entres os meses de abril e junho de 2014, precisei fazer uma viagem para a França, me afastei da música e dos sons do Brasil para me inserir em outra cultura. Aliás, em outras culturas. No grupo, éramos brasileiros, franceses, marroquinos e um togolês. Cada um com sua forma de lidar com a música, com os sons e o silêncio. Todos hospedados na mesma casa!
Cinco vezes ao dia, meu corpo era atravessado pelo som do Ramadan, oração, que parece mais um canto, feita por um dos marroquinos de religião muçulmana que estava conosco. Soufian El Kati. Contemplar o estado corporal proporcionado por esse rito de fé é tocante, emocionante. Meu corpo vibrava com essas sensações. O som preenchia todos os espaços da casa e a sensação era de plenitude, preenchimento.
Do lado de fora, vejo as montanhas; neva todos os dias no topo da montanha, mesmo quando faz sol. Ao abrir a porta da casa, uma imensidão de silêncio me invade, tanto silêncio que me faz explodir por dentro; era dessa forma que meu corpo reagia, não comportava tanta beleza advinda do silêncio. Era uma resposta do meu corpo para todos os sons mínimos que existiam naquele ambiente e que meus ouvidos ainda não conseguiam captar, perceber ou identificar. Constatei a necessidade de perceber o som com o meu corpo, e não, somente com meus ouvidos.
Nos dias de trabalho, ao chegar ao teatro (Salle Paul Jargot), descubro que lá funciona uma escola de música: acordes, timbres, flautas, violoncelos, violões, pianos… Todos os sons me atravessavam. Será que eu estava “obedecendo” ao meu corpo? Será que meu corpo estava ouvindo?
Sodjine Sodetodji, o togolês, um negro magro, de belo sorriso e de uma presença fascinante, fala comigo cantando. Um som grave, que não sei de onde vem. Ele é cristão e me dizia que era um leão. Eu acreditava nele, o som que saía dele me fez acreditar!
Na ida para o teatro, o som que nos acompanhava era “oú t’est papa oú t’est…”, canção de um jovem cantor francês de origem algeriana. No ensaio, o som da percussão, as congas, o jambê e o atabaque, como Conrado Falbo bem descreveu falando do surdo da orquestra de frevo, batiam forte no meu peito. As sensações eram realmente corporais e reais. Frio na barriga, arrepio na coluna, falta de ar, peso. O violão, o guembri (instrumento tradicional do Marrocos) e a voz de Zac (um músico marroquino que nos acompanhava) nos unia em um só corpo, trazendo um equilíbrio para tanta diferença junta. Todas essas diferenças unidas pelo mesmo código: o corpo.
Ao observar essas diferenças, percebo que falamos em som a partir de nossas experiências e sensações corporais, que envolvem o “corpo como um todo”. Nesse momento, talvez devamos observar os processos, os caminhos, o como nossos corpos se envolvem com essas experiências, que, por vezes, passam despercebidas. Não somente o porquê meu corpo se estremece ao passar por essas experiências sensório-corporais, mas também quais os caminhos que o som percorre dentro do meu corpo, que fazem com que eu tenha sensações e respostas palpáveis, reais e concretas. Francini Barros, por meio de Merleau Ponty, nos falou da percepção, e acho que os sons passaram a brilhar para mim, tornando-se música. Hoje, os sons se tornaram reais e concretos!
Um conceito que discutimos bastante no decorrer da pesquisa foi o de paisagens sonoras. Murray Shafer, em seu livro A afinação do mundo, no capítulo 10, intitulado Percepção, fala de uma das formas de perceber o som “tomando de empréstimo um termo que geralmente é atribuído à percepção visual: figura versus fundo”. Shafer fala ainda de outro termo, a ideia de campo, e diz que esses termos se complementam em suas formas de perceber o som. A figura é tida como uma marca sonora; o fundo, como um ambiente sonoro; e o campo, como o espaço, o lugar, o território de ocorrência desses sons que seriam a paisagem sonora. Esse texto, em particular, me tocou bastante, pois pude nomear, com a ajuda de Shafer, aquela turbulência sonora que estava invadindo meu corpo. Outros termos apareceram como forma de percepção sonora: competência sonológica, noção tomada de empréstimo da psicologia, que, grosso modo, seria entender quais sons o sujeito/eu sou capaz de identificar em um ambiente sonoro; perspectiva e dinâmica; gestos e texturas. Todos esses termos se complementam e se concatenam na percepção sonora, em como percebo os sons.
Na reta final da pesquisa, assistimos à palestra de uma musicista chamada Evelyn Glennie. Ela inicia a palestra tirando os sapatos e fala uma frase que me toca e, ao mesmo tempo, me impressiona pela ousadia. Ela diz o seguinte: “[…] O único objetivo em minha vida é ensinar o mundo a ouvir, ensinar as pessoas a ouvirem […].” Em seguida, ela dá um exemplo da diferença entre traduzir e interpretar uma partitura. Percebemos com clareza as diferenças: na tradução, seus movimentos limitam-se a respeitar o que está descrito na partitura; já na interpretação, há o envolvimento do seu corpo na forma de, não somente ler, mas explorar o que está na partitura. Ela diz que, como musicista, precisa “fazer tudo que não está na partitura”. Entendo essa frase como esgotar o máximo de possibilidades de interpretá-la. O comprometimento do corpo volta à baila; a forma como todo seu corpo se envolve na interpretação da composição musical proposta; suas mãos, seus pés, seu rosto, seu cabelo, todo seu corpo como extensão do instrumento e do som. Ela diz que, para interpretar uma música, uma partitura, é preciso ouvir; e, para ouvir, é preciso de tempo; tempo para perceber nuances e possibilidades; ouvir para entender que corpo o som tem; ouvir para que o som seja uma extensão do meu corpo.
Evelyn Glennie, no meio da palestra, narra uma parte de sua trajetória ao entrar para a Royal Academy em Londres. Ela diz que, na primeira etapa da audição, correu o risco de não ser admitida pelo fato de ser SURDA. Fui arrebatado! Meu corpo reagiu da seguinte forma: primeiro, uma emoção profunda, chorei bastante por dentro, meu corpo estremeceu realmente; segundo, uma visão pré-conceituosa: “Como assim, ela é surda?”; e, em terceiro lugar, uma constatação perto do óbvio. O óbvio que me relançava para os caminhos e possibilidades que essa pesquisa me lançou a perceber. Para ouvir, não dependemos somente dos ouvidos, devemos experimentar, degustar os sons de maneiras diferentes, “ser participante do som”, utilizar nossos corpos como “câmaras de ressonância”.
No final da pesquisa, ainda me sinto um pouco com medo, com meus medos. Mas vejo, no caminho que começo a perceber, “meu corpo como um todo” e, no campo das possibilidades, parafraseando Evelyn Glennie, vejo meu corpo propenso a entender e amar a arte de criar sons que dançam.
* Texto escrito especialmente para o projeto de manutenção de pesquisa de grupo Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, incentivado pelo Funcultura e realizado entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015.