Blog . Sábado, 25 de setembro de 2010 . Marcelo Sena

No início deste ano, fui convidado pra mediar uma conversa sobre crítica de dança, dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos, um festival anual de Recife. Foram convidados como debatedores Marco Bonachela (formado em Comunicação Social) e Roberta Ramos (doutora em Literatura). O debate iria tratar de cinco espetáculos de dança que estavam na programação do festival: 5 Minutos Para Blackout, De Dentro, Leve, Por Um Fio Em Lã e Sobre Um Paroquiano.

Durante o evento nos encontramos para conversarmos sobre os espetáculos e também esboçar uma linha de discussão. Foi quando começamos a fazer diversas considerações sobre o contexto deste debate. Começamos a perceber que o espaço dedicado à crítica de dança na cidade ainda é muito pequeno, quase nulo. E isso nos colocava numa situação em que, nossas considerações, não entravam em contraponto com outras ideias, mas seriam, talvez, as únicas ideias expressas sobre aquele espetáculo. Isso nos incomodava, por concordarmos que há diversos pontos de vistas para um mesmo objeto. Além disso, não há, ainda, o hábito desse tipo de discussão na cidade, em que o crítico e artista estão de frente para discutir uma obra. Além de não termo críticos de dança nos jornais locais. Os “mal-entendidos” de ambas as partes poderiam ser muitos.

Decidimos que Roberta iria trazer um contexto pelo viés da dramaturgia corporal nos espetáculos, fazendo uma comparação entre o que estava escrito na sinopse e o que era apresentado no palco. Marco ficou de fazer uma relação entre os textos de cada espetáculo contido no programa e o que já tinha sido publicado nos jornais (quatro deles tinham apenas reportagens, e um tinha uma crítica).

No texto “A pesquisa das danças populares brasileiras: questões epistemológicas para as artes cênicas”, a professora Eloisa Domenici coloca diversas questões sobre como danças tradicionais foram catalogadas e repassadas em seu processo histórico. E, com isso, ela se posiciona contra uma epistemologia que quer abordar a dança, pelo viés do passo, pela coreografia (no sentido de escrita da dança). Ela vai mostrando que esse método acaba por fazer um recorte para o registro e memória da dança, que deixa de lado outros fatores tão, ou mais, importantes para a compreensão do fenômeno. E propõe a apropriação, pelo pesquisador, do contexto em que aquela dança acontece, percebendo suas metáforas ditas e “encorporadas”, o que ela considera mais seguro e fiel para a compreensão dessas danças.

O que há nisso que toca aquele encontro sobre a crítica?

Quando eu, Marco e Roberta chegamos ao espaço onde aconteceria o debate, percebemos olhares bastantes desconfiados, para saberem o que iríamos falar. Alguns de medo, outros de desafio. E o “ring” foi tomando forma. É aí que chego à interseção desses dois exemplos que dei acima: precisávamos ter a propriedade da construção daquelas danças que foram criadas, de seus processo, e de seus contextos, mas também precisávamos de que houvesse o hábito da troca de opinião sobre um espetáculo e do olhar que encara a crítica também como pesquisa. E para que haja a pesquisa, sempre utilizaremos alguma epistemologia(1).

Por qual viés iríamos falar dos espetáculos? Iríamos valorar como bom, ruim, melhor, pior? Como tratar a diferença entre o coreógrafo e o bailarino? A dança era mais popular, moderna ou contemporânea? Todas essas perguntam são uma grande armadilha, pra quem acha ser simples um encontro como aquele.

E nós três tínhamos a consciência desse risco, e falamos bastante sobre ele. Decidimos não criticar os espetáculos, diretamente, mas tratar de questões que surgiram deles, encontrando convergências e divergências, tentando encontrar um caminho que não estivesse no lugar comum da valoração simples e direta. E, principalmente, levantar outros discursos sobre os espetáculos, como os textos da sinopse e das reportagens, para percebermos o quanto os “pontos de vista” podem ser diversos.

Pensar na “possibilidade do conhecimento” quando se fala em dança, pode parecer até engraçado, quando muitos dizem que dança não é para entender, mas para sentir. Porém o próprio fato de sentir também gera conhecimento. Mas como iremos argumentar sobre o sentir, em um espetáculo? Vai parecer algo extremamente pessoal, não é? Mas é aí onde a construção de uma outra epistemologia para conhecermos a dança pode ajudar.

Já vi diversas críticas que valoravam um espetáculo por ele não ser “original”, ou por ter misturado coisas que não são de uma mesma origem, como passos de uma dança francesa com um outro de uma dança brasileira. Quando chegamos mais perto dessas características, percebemos que aquela dança francesa, não é “tão francesa” quanto nos parece, e nem a dança brasileira é “tão brasileira”. E assim podemos ir deduzindo outras tantas coisas.

Eloísa, em seu texto, chega a propor, claramente, a observação da dança pelas dinâmicas corporais, ao invés de passos e coreografias, criando uma outra forma de organizar o conhecimento da dança. Isso nos faz repensar inclusive nossa própria postura frente a um espetáculo. Muitas vezes somos estrangeiros em nosso próprio lugar, e isso fica claro quando assistimos a um espetáculo de artistas de nosso convívio e não conseguimos sistematizar o que está sendo proposto enquanto dança.

Tenho tentado levar essa outra epistemologia que Eloisa Domenici traz, para ambientes que não sejam apenas da tradição, e tenho percebido que também se adequam facilmente, pois a própria perspectiva que a dança vem tomando, faz com que seus procedimentos de criação, muitas vezes, não partam dos passos ou coreografias, mas de outros estímulos, o que gera também um outro modo de conhecer do corpo.

E se levarmos em consideração a hipótese, levantada por Piaget, de que o conhecimento e a linguagem são construídos, fundamentalmente, por meio da experimentação do movimento corporal, podemos deduzir também que um contato mais próximo com seus processos podem também nos fazer dizer mais, e com mais propriedade, o que uma dança pode propor.

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(1) Um ramo da filosofia que estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento. Também conhecida como Filosofia do Conhecimento.