Por Filipe Marcena*

Caí na pesquisa sobre Audiodança de paraquedas. Sou um recém-formado bacharel em Cinema e Audiovisual com experiências mínimas em dança e música. A princípio participei da pesquisa como ouvinte, confuso porém encantado por todos os conceitos, termos e ideias que nada tinham a ver com minha área (obviamente eu estava muito enganado em relação a isso, mas vamos chegar lá). Alguns meses depois me tornei membro da Cia. Etc. como videasta, cineasta, videoartista, videodançarino… enfim, qualquer função que envolva uma câmera dentro de uma companhia de dança. Isso significava que a partir de então eu também tinha a obrigação de escrever um artigo sobre Audiodança.

Como tinha pouca base teórica em dança, música ou som, encarei a pesquisa como uma constante descoberta, ao mesmo tempo em que eu inevitavelmente formava relações daquilo que lia e ouvia com o cinema. Considerando o nome do objeto de pesquisa, essa coisa objetivamente indefinível, parecia-me algo impossível de se fazer: em que instâncias uma expressão artística essencialmente visual como o cinema poderia dialogar com a audiodança, uma expressão artística que independe do e até nega o olhar? Durante o processo, ao perceber que é mais interessante encarar a Audiodança como uma gama de possibilidades ao invés de um conceito fechado, surgiram-me duas questões que me pareceram pertinentes:

I: Precisamos necessariamente negar o olhar para considerarmos uma obra audiodança?

II: Estariam o cinema e a audiodança tão distantes como parece à primeira vista? Quais seriam as interseções entre essas expressões?

Nesse artigo desenvolverei possíveis respostas para tais questões, ou ao menos esboços.

I

Fizemos vários experimentos de audiodança durante a pesquisa, tanto entre os próprios membros da companhia quanto junto aos convidados do grupo de estudos. Passei a assumir o corpo inteiro como receptor sonoro, que não somos limitados a ouvir apenas pelos ouvidos. Também assumi que existe dança na música. Quando digo “assumi” ao invés de “aprendi” é porque eu já havia percebido ou experimentado essas coisas durante a minha vida, só não havia concretizado verbalmente nem fisicamente tais percepções. Por exemplo, os surdos que ouvem e/ou fazem música; as danças das notas musicais nos programas Rá-Tim-Bum e Castelo Rá-Tim-Bum.

Averiguei a presença do olhar e qual o nível de importância dele nos vários experimentos audiodançantes que realizamos. Antes de discorrer a respeito, preciso reconhecer que a experiência da Audiodança pode se dar de forma hierárquica, ou seja, alguém prepara/organiza/assiste a sua performance de audiodança. Porém isso não é uma regra. Por exemplo: nos experimentos com Fran Barros, a própria nos dava coordenadas que envolviam produzir sons corporais e/ou vocais e também realizar movimentos, a fim de explorar os limites do corpo-som, criando percepções do que Merleau-Ponty chamou de quiasma. Durante todo o experimento, todos mantivemos os olhos abertos. Percebíamos a dança majoritariamente através do olhar, embora os sons produzidos por mim, pelos outros e pelo ambiente fossem salientados pelo próprio contexto do experimento. O olhar não foi negado, mas “ignorado”.

Já nos experimentos individuais, quatro dos cinco envolviam vendar os olhos. No de Elis, ouvimos uma narrativa de múltiplos personagens em situações de movimentos corporais relacionados à política. Só ela nos via. No de Renata, demonstrávamos se sentíamos medo ou não de coisas determinadas por ela, sem jamais poder repetir os movimentos de pavor. Só ela nos via. No de Marcelo, respondemos algumas perguntas que foram gravadas e logo depois reproduzidas com sons de natureza e música ao vivo. Só ele nos via. No meu experimento, transportei meus colegas ao meu quarto quando eu tinha 15 anos ao dançar uma música punk eletrônica ao redor deles, mas eles não ouviam a música nem viam o que eu estava fazendo. Só eu os via. Nesses experimentos, os olhos foram totalmente negados, ora pelos audiodançarinos, ora pelo criador da audiodança. No caso do de Renata, o que ela via era importante para a obra, o que não aconteceu com os outros.

Já no experimento de Júnior, o olhar ganhou tanta importância quando os ouvidos (e o resto do corpo): fomos orientados a olhar para a rua do 21º andar enquanto ele recitava um poema-dança. A proposta era encontrar visualmente ou metaforicamente uma dança no cotidiano através da intervenção do poema. Dentre os experimentos, diria que foi o mais cinematográfico, aquele que poderia ser mais facilmente adaptado para tal linguagem. Já no experimento de Conrado Falbo, formamos um círculo e cada um repetia uma palavra individual e diferentes intensidades e alturas, de olhos fechados. A intenção era reconhecer as palavras que os outros repetiam sem parar de repetir a própria palavra escolhida. Aqui o olhar também foi negado, até mais do que em qualquer outro experimento que envolvia vendar os olhos, já que o de Elis, o de Renata, o de Marcelo e o meu traziam, em diferentes níveis, uma ideia de imagem mental para que as audiodanças funcionassem. Essas imagens imaginadas serão desenvolvidas em breve.

Experimentamos a vida com o todo corpo, incluindo olhos e ouvidos, mas estamos longe de ter total consciência de nossas múltiplas capacidades. O mesmo serve para a fruição artística. Ler um livro na quietude de nossa cama à noite ou ler o mesmo livro num parque bastante frequentado de dia são experiências diferentes. O cinema sabe se utilizar de nossa multiplicidade perceptiva (embora muitas vezes não o faça por x motivos), e a Audiodança também se mostra como uma linguagem que permite instigar de ilimitadas formas todos os nossos sentidos, precisando negar ou não o olhar com os olhos.

II

Uma das primeiras coisas que ouvi quando comecei a estudar som no cinema foi a seguinte frase (proferida pelo professor Rodrigo Carreiro, por sua vez inspirado, salvo engano, por Michel Chion): Som é imersão. Tanto o Cinema quanto a Audiodança utilizam-se do som, embora no primeiro não seja algo obrigatório. Essa é a primeira diferença que enxergo entre os dois: o Cinema precisa do olhar mas não necessita do som, embora ele ajude na imersão; a Audiodança precisa do ouvir mas não necessita do olhar, embora ele possa ajudar em determinadas experiências.

Durante toda a pesquisa, perguntei-me se seria possível criar um diálogo íntimo entre Cinema e Audiodança. Em minhas investigações, fui até a origem do primeiro e lá encontrei alguns dados que pude relacionar com o objeto de pesquisa. A começar pela própria origem da palavra “cinema”, que vem do grego e significa movimento (cinematógrafo, a máquina que deu origem ao nome, significa “registro em movimento”). O cineasta, produtor e escritor Abel Gance, ao tentar definir uma essência para o recém-surgido cinema, disse que essa nova invenção era a “música da luz”. Citando Robert Stam, “Para ele, o cinema dotaria os seres humanos de uma nova consciência cinestésica: os espectadores ‘ouvirão com os olhos’” (STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 2003, p. 51). Tais conceitos dos primórdios do cinema revelam uma necessidade de relacionar essa então nova linguagem à outras, como a música e o registro gráfico, ou mesmo uma impossibilidade de não fazê-lo. Tateava-se o desconhecido com os sentidos, utilizando-se uma interdisciplinaridade que despertava a cinestesia citada por Stam. Vemos aqui movimento e música/som como conceituação e metáfora do cinema, conceitos que estão intimamente relacionados à Audiodança.

Voltando aos experimentos de Renata e Elis, percebi o quanto a imagem é forte mesmo quando a visão é negada. No caso de Renata, é inevitável imaginar o significante das palavras proferidas antes de esboçar uma reação de medo. Ao ouvirmos a palavra “escalar”, uma imagem se apodera de nossas mentes, certamente imagens diferentes umas das outras (Elis imaginou uma montanha e se contorceu, eu imaginei uma parede de escalada e neguei sentir medo). Ou seja, há uma forte presença imagética, porém esta se dá no imaginário. O mesmo funciona para as narrativas de Elis, onde imaginamos os personagens e movimentos. Em ambas as instâncias, diria que somos espectadores-ouvintes, como cegos que vão ao cinema.

Também procurei por exemplos concretos do cinema que pudessem vir a ter elementos de Audiodança. Dois exemplos mais óbvios seriam os musicais de dança que envolvem sapateado (sons produzidos pelo corpo) e o trabalho do artista de foley, que recria artificialmente em estúdio os mais variados sons para ser utilizado nos filmes, como trote de cavalo feito com cocos ou com as palmas das mãos em conchas. Tenho dois exemplos mais interessantes: os filmes Branca de Neve (2000), do português João César Monteiro, e Ratatouille (2006), de Brad Bird. O primeiro é uma adaptação da clássica história onde a maior parte do que se vê é uma tela preta. Acompanhamos basicamente uma narração no escuro e somos levados a imaginar o que ouvimos. Apenas alguns sons são ouvidos, e em momentos ocasionais, imagens de um céu com nuvens e da natureza aparecem. O filme desconstrói a ideia do cinema como sendo algo essencialmente visual, embora não deixe de criar suas imagens (recebidas pelos ouvidos). Já Ratatouille possui uma cena específica como exemplo: o rato cozinheiro Remy tenta explicar ao seu primo glutão as diferentes texturas e sabores nos alimentos em suas diferentes combinações. Enquanto isso, o primo fecha os olhos. O fundo fica escuro, vemos apenas o rato guloso comendo. Ao seu redor aparece uma colorida representação desses sabores e texturas, onde a cor, a forma e o movimento trazem grande significado. Embora aqui os sentidos realçados no rato guloso são a audição e o paladar, temos aqui uma interessante forma de criação cinestésica de imagens mentais: ao ouvirmos a descrição de determinado sabor, o rato sente o sabor na boca e nós vemos a representação desse sabor nas luzes coloridas que dançam ao seu redor. Assim como na Audiodança, formam-se imagens imaginadas e, indo ainda mais além, sentidas.

Se na metáfora visual de Ratatouille nós fomos capazes de ver o sentir um sabor, pergunto: o que é ver o ouvir uma dança?

Imersamos.

* Texto escrito especialmente para o projeto de manutenção de pesquisa de grupo Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, incentivado pelo Funcultura e realizado entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015.