[Texto de Caio Lima]

Muito frio,
na sala de aula o cheiro de rato morto nos invadia. Todos os pianos encontravam-se, despropositadamente, desafinados. Partituras inacabadas amarelavam-se no teto. No fundo da sala, um quadro negro onde o “sistema de figuras de valores” permanecia desenhado, inclusive, naquele dia completara 470 anos que aquilo se fazia ver naquela sala. Milhares de diapasões abarrotavam os armários. As paredes estampavam os rostos de uns velhos e suas perucas, as suas façanhas nunca nos detiveram os ouvidos, trancafiados ali não haviam sequer podido nascer para nós. Alguns homens, carregando batutas, atravessavam a imensa porta que dava acesso à sala. Sem esbarrar nos que lá estavam, descreviam, um a um, a mesma trajetória e saiam sem romper o silêncio. Curiosamente, dizem os iniciados, aquele comportamento é parte da encenação do mistério. Como é de costume, os desobedientes sempre arriscavam desvendar o motivo do ritual: “Ouvi dizer que a música é um milagre e nós, nós somos uma folha em branco que, através do esforço e da prudência, nos prometemos para receber a divindade!”. Nunca se fortaleceu em alguém a possibilidade de zombar daquilo. Para tanto, havia sempre um livro de ponto que possuia luz própria, toda a ausência era automaticamente computada, nenhum assento era alcochoado, nenhum som deveria ecoar pela sala. Há seis meses apenas ouviamos um som grave e outro agudo entrecortados por palavras de ordem que sabiam nos comover o gênio da esperança ou a esperança do gênio. Até que, inesperadamente, como se nada de mais quisesse, uma inquietação transformou-se em voz:

– como faríamos para ensinar música a alguém que nunca teve contato com música?

a questão não demorou no ar quando a sua solução saiu pela mesma boca:

– com Vivaldi, é claro, né, Professor?!

João estava por ali. Aquele frio lhe dava sono. Por acaso, ao presenciar aquela cena, se viu derreter ao fechar dos olhos. Acordou, estava no parque 13 de maio. O mundo vibrava sem piedade. A gravidade devorava os seus pés. Os homens lamentavam em silêncio. O sol era tão grave que lhe queimava o corpo. O mar ressoava em seu coração. Como ondas, seu pensamento se espraiava. Como pedra, seu corpo tinia. Correu, pisava o chão às trovoadas, para a Rua da Aurora, seus cabelos produziam agudos como as palhas do coqueiro. Escutou pela primeira vez o som estridente do medo. Estava ali o arrepio na sua voz. Imediatamente, rasgou as folhas do seu Prioli. Quebrou a flauta doce ao meio.