28 de janeiro de 2012 . Publicado no blog Cala a Boca, Michelotto!!!
Eu pedi à Polly para escrever este comentário. Como comentei Amour, acide et noix achei mais positivo que ela falasse sobre o escuro do quarto. Para não ficar me repetindo. Ela insiste que eu ainda sou bom quando repito. Então lá vou eu de novo.
Não há como não comentar Dark Room em relação a Amour, Acide et Noix. Tudo salta à vista em ambos e nesse nosso mais ainda. Posso enumerar? Facilita.
1- Dark room é sem dúvida o que faltou aos canadenses: o corpo pesado, libera- se da cultura/veste em busca de ficar mais leve. A queda da roupa que o tornava pesado, grave, sério, pura atração da Terra é o primeiro movimento de qualquer vôo. O segundo é o do vôo em direção dos outros corpos, que nos atraem pela mesma lei. Os canadenses apenas esboçaram tal movimento. É possível que o que queriam como presença em palco fosse apenas isso- o que já é muito. Mas.
2- Esse mas é que todos nós sempre colocaremos: se a relação de atração corpo humano/ Planeta Terra foi tão bem significada, por que não prosseguir e significar também a atração universal, a de todos os corpos e sobretudo, o que mais nos interessa, o corpo humano atraindo o humano?
3- Sei bem, os canadenses foram até lá, mas justo ao ponto onde nos tornamos todos voyeurs. Inclusive os bailarinos. Eles mal se tocam, apesar de se atrair. Há inúmeras quedas muito bem estudadas de um corpo ao outro. Em equilíbrio, em desequilíbrio, em explosão, em contensão, enfim.
4- Eu deveria estar falando de Dark Room e estou falando de Nozes.
5- Permitam-me antes falar com Nietzsche? “Pesam-lhe os pés e o coração; não sabem dançar. Como a Terra há de ser leve para tal gente!” IV Parte, XVI. Ou melhor: “e se meu alfa e ômega é tornar leve tudo quanto é pesado, todo o corpo dançarino, todo o espírito, ave.” Assim falou Zaratustra, Terceira Parte, O outro canto do Baile, Os Sete Selos VI. Coisas que Polly, Thaisinha e eu dançamos em 2003.
6- Quem reflete de há muito sobre a gravidade da Terra e todo seu corolário de atração dos corpos e sua relação íntima com a dança, não sou eu. Uma imensa história me precede.
7- Dark Room é a dança dos corpos nús. Nem sei por que fizeram tanta propaganda dos canadenses e quando fui ver Dark Room nem tinha ideia de que também eles dançavam o mesmo e eterno ritornelo da atração universal dos corpos e suas consequências graves ou ridentes. Dark Room tratou tudo como um bom brasileiro trataria. Aqui não há o frio do Québéc, e nossa cultura é abaixo do Equador, completamente meio sem pecado, portanto, dizia Xico.
8- A escuridão ou a luz apagada é uma das roupas que vestimos. A companhia foi inteligente no título e na consequente luz incidente ao longo do espetáculo. A luz é apenas mais um corpo. E isso é quase um tratado de Quântica, deus meu. Os bailarinos não estão trabalhando no plano dos Canadenses, pois aqui o humor é constante, o riso, a alegria a marca maior, a Terra nunca lhes é leve sob os pés (cito Nietzsche falando dos imbecis, dos que nunca dançam), sua alegria é constantemente voltada para o chão.
9- Os canadenses dançaram com pés leves seus corpos pesados, sua musculatura admirável e bela, dançou o alfa: o tornar tudo leve, todo espírito, ave. A Terra. Etctera dançou o ômega, tornando leve tudo quanto é pesado (o medo do encontro, do corpo a corpo), um só corpo- dançarino. O Homem.
10- Pois senhores o riso, a felicidade está do lado do Homem. E Etcétera é uma companhia admiravelmente alegre.
11- Não sei se para tratarmos coisas humanas tão sérias como o fenômeno da atração dos corpos (Canadenses e brasileiros fizeram um uníssono aí) precisamos ser carrancudos. Sei que se rirmos estaremos à beira do contato físico- que os canadenses não evitaram, mas acabaram se mostrando como um povo reticente. Etcétera escancara, porque somos nós, somatório de nossas infinitas repressões sexuais mesclado com nossa coragem de cão de querermos ir adiante, um pouco mais adiante do que apenas ver.
12- Isso aconteceu com Etcetera e eles ainda chegarão lá, mais longe e eu nem sei o que isso possa ser, mas sei que esse é meu melhor voto. Foram bem além da fronteira limpa e quase científica dos canadenses, encheram nossos sentidos de felicidade por se aproximarem. Qual é então o problema com os sentidos além da vista senhores? Meu bom Barthes dizia que todo teatro ocidental era um teatro de voyeurs. Os bailarinos do Etcetera estão também quebrando isso: desceram do palco e se cercaram de nós, quebrando a Noz. Eu senti o cheiro do suor das bailarinas e dos bailarinos, eu vi cada caminho que a dança percorria em seus corpos, eu ouvi cada som de cansaço, eu senti o peso de seus cabelos em minha perna, e só me faltou cantar, falar, soar, mas não falei, não cantei, não ressonei por que ainda não sou um público bailarino como pedido pelo meu bom Nietzsche lá no mesmo Sete Selos que citei e dancei um dia: Sétimo e último Selo[VII] ”Olha nem para cima nem para baixo! Lança-te à roda para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales mais! Não estão as palavras feitas para os que são pesados? Não mentem todas as palavras ao que é leve? Canta! Não fales mais!”
13- Meu canto para o Etcetera.
14- Há solos admiráveis, há duos admiráveis, há uníssonos admiráveis. Uníssono? Por que estão em uníssono quando, por exemplo, cada um em seu canto faz exatamente as torsões que mostram as possibilidades de um corpo- mas dessa vez com uma proximidade assustadora dos outros corpos, assim chamados público?
15- Ouviram Marcelo? Ele parece ter lido Nietzsche. Ele dança e canta. E é mais corrosivo do que todas as nossas passeatas diante de soldados, vestindo- se apenas com o signo do seu pequeno poder, suas botas. Uma obrinha prima.
16- As meninas tem uma atração belíssima, uma relação absolutamente delicada e feminina transformada em dança.
17- Júnior retoma os saltos pesados dos sapos canadenses (assim eu vi alguns dos saltos deles, que achei simples e admiravelmente bem encaixados no roteiro) numa libélula exótica, uma fauna tropical, bicho esguio, corpo vagando vagalume por aí.
18- Natalie está esplêndida, vaporosa, entrando em histeria cortada numa psicanálise barata e sulamericana do champanhe jogada em sua cara por Júnior… Impagável!
19- Liana nos inicia no gozo, mobiliando, cenarizando a sala ainda inicial, ainda vazia, com os sons e movimentos de um corpo cio. Blz pura. Na hora exata, pois a beleza é apenas uma questão de lugar e tempo. E Liana é simplesmente envolvente, nos rodeia e cerca. De beijos, de beijos. Primeira carne de todas as carnes, a boca, Que assim começa a cantar.
20- Há mais, muito mais. Mas vá ver hora essa, que meu papel não é esse de te poupar em nada. Pelo contrário. Estou aqui para completar o risco. Vá ver, cheirar, ouvir, cantar, etcetera. Pois este é o nome.
21- Um finale divertido para mostrar que Etcetera veio para quebrar o simples e repetido voyeurismo do teatro e dança ocidental- que fez Barthes abandonar a cena. Já quebrou dançando entre nós, nos permitindo sentir o corpo deles, seu peso, sua simplicidade comovedora à mostra. Linhagem em que nossa companhia também se inscreve.
22- Etcetera tem um caminho gigantesco pela frente. Pois apesar de estarmos já virando a primeira década do século XXI, ainda NÃO sabemos direito o que fazer com nosso corpo.
23- Senhores, ainda temos um puta medo de nós mesmos e de nossa parte mais importante, o corpo.
24- Sem dúvida Etcétera deu um passinho além dos nobres passos de nossos bons irmãos canadenses.
25- Um passinho apenas para eles, mas um passo enorme para a humanização de nossa arte.
26- Nota final.
27- Sempre tem uma maldita nota final.
28- Eu vi uma enormidade de Curadores de cara feia em direção aos corpos nús que se divertiam, tornando tudo leve, todo espírito ave. Não creio que nenhum deles vá levar Etcetera a lugar algum. Levam os canadenses por que são canadenses e nós colonizados.
29- Só.