Artigo escrito por Marcelo Sena para a disciplina Improvisação, ministrada por Lineu Guaraldo, pela pós-graduação da Faculdade Angel Vianna / Compassos Cia. de Danças em 5 de julho de 2010.
RESUMO: Este artigo pretende trazer algumas reflexões sobre a mudança de estados corporais dos bailarinos do espetáculo “Silêncio”, criado em 2004 e remontado em 2010, tendo como coreógrafo Saulo Uchôa e direção artística de Marcelo Sena. Quais desdobramentos dessa mudança interferiram na própria concepção de corpo e de fazer artístico, como caminho para construção de conhecimento. Pretende-se aqui perceber quais estados corporais foram percebidos e descobertos durante a primeira montagem, tendo como perspectiva o conceito de corpo artista, defendido por Christine Greiner em seu livro “O Corpo – pistas para estudos indisciplinares”. Pretende-se também entender os motivos que levaram esses artistas a remontarem esse espetáculo, já que, entre a primeira e segunda montagem, parte do elenco passou por outras pesquisas corporais que trouxeram outras maneiras de entender e perceber o trabalho do bailarino.
Num período de 10 anos, a Cia. Etc. passou por mais de dez processos de criação de espetáculo. Vários desses processos são bastante diferentes em relação à metodologia de criação e treinamento corporal, tornando difícil estabelecer um método único para quaisquer criações. Mas, no ano de 2004, em sua quarta montagem, intitulada “Silêncio”, a companhia passou por uma mudança na percepção de corpo e do processo de criação que mudou profundamente a forma de ver e fazer arte no grupo e que estabeleceram algumas direções que vêm se aprofundando e norteando a forma de trabalho criativo.
As três primeiras criações da companhia deu-se entre 2000 e 2002, e do último ano até a estreia do espetáculo seguinte, passaram-se dois anos de leituras sobre a arquitetura da Bauhaus, o minimalismo, filosofia e autismo, para a montagem de um novo espetáculo que levaria ao palco uma “representação” da loucura, de acordo as primeiras ideias para a nova concepção. Nesse tempo, outras referências foram surgindo, como o movimento anti-manicomial (o que abriu os olhos dos integrantes para outras relações entre o psiquiatra ou psicólogo e o paciente), a convivência com uma psicóloga que apresentou à companhia vários tipos de doenças mentais, definidas pelas ciências médicas, e como a loucura foi institucionalizada, principalmente com o surgimento dos manicômios entre os séculos XV e XVI.
Com essas referências, o coreógrafo Saulo Uchôa e o diretor artístico Marcelo Sena começaram a voltar a atenção ao comportamento dos indivíduos autistas. Nesse caminho, começam a perceber que o silêncio passa a ser algo que incomodava bastante àqueles que conviviam com essas pessoas. Por considerarem o tema da loucura muito delicado para as experiências de ambos, decidiram ir para esse fator em particular – o silêncio. É quando começaram a perceber que as questões corporais trabalhadas em aulas de dança não davam conta do que estavam buscando. Haviam outras inquietações em relação a estados corporais que não apareciam nessas aulas.
“Quando se começa a estudar o corpo a partir de estados diferentes (e, muitas vezes, simultâneos), é como se identificássemos múltiplos escaneamentos nos quais imagens se atravessam umas às outras e mudam a cada instante. Embora, como diz Damásio, o fluxo de imagens (que ele chama de pensamento) seja intenso e ininterrupto, é provável que haja especificidades no que diz respeito ao modo como tais imagens se organizam, significam (ou não) e se tornam (ou não) visíveis. Assim, há evidências de que alguns desses pensamentos-imagens se processam de modos específicos no corpo artista. Esta especificidade não está nas “coisas” que elas representam mas no “modo” como operam.” (GREINER, 2005: 109)
A companhia começava a desistir de “representar” o tema, de procurar copiar movimentos que trouxessem as referências estudadas e as experiências vivenciadas. A busca de estímulo para a criação começava a partir de “como” o corpo experimentava o silêncio. Quais eram as sensações trazidas, ao lembrar de momentos em que o silêncio se tornava quase físico no corpo. Neste momento, a criação em processo já estava focada completamente na temática do silêncio.
Essa forma de começar a perceber o corpo, jogava grande responsabilidade para o fazer artístico do bailarino, já que não estava mais no “passo”, ou no desenho do movimento a exigência de uma boa “atuação”. Nesse contexto, começaram a surgir crises referentes ao que era criado enquanto movimento, já que movimentações bem distante do vocabulário comum de dança em que, até o momento, a companhia dialogava, iam aparecendo. Perdia-se a vontade de ter que passar por alguns movimentos já convencionais para se afirmar enquanto característico da dança. Em alguns momentos, chegava-se a evitar conscientemente “clichês” da dança.
Fazendo referência a alguns questionamentos feitos por Christine Greiner sobre o corpo artista, ali a companhia começava a trazer questões que iriam contribuir profundamente para uma construção de conhecimento relativo ao corpo, que iria interferir na metodologia da aula, na relação pedagógica entre professor e aluno de dança e na própria concepção do que passa a ser um bailarino numa companhia, como a Cia. Etc., assumindo um papel primordial na criação de movimento, de estados corporais e de procedimentos de pesquisa para o processo criativo. Esboçava-se uma outra concepção de dança, que partia da experiência artística, dos experimentos corporais, e que passou a ser uma mola propulsora para a continuidade dos trabalhos da companhia.
“‘Umedecendo silenciosamente a raiz do tempo’, como sugere o poeta Yoshimasu, percebe-se que sempre foi assim. O que muda é a possibilidade que a arte, a ciência e a filosofia têm nos mostrado nos últimos anos, mas poucos conseguiram enxergar com clareza: é da experiência que emerge a conceituação e não o contrário. As fronteiras entre o corpo e as teorias do corpo estão definitivamente implodidas. Mas para testar essa hipótese não basta estar vivo. É preciso fazer da vida um exercício político de produção sígnica e partilhamento de saber.” (GREINER, 2005: 123)
Seguindo este caminho, a companhia conseguiu concluir a criação, que teve sua estreia em março de 2004, ficando em cartaz durante um mês e tendo feito apenas uma outra apresentação em um outro estado. Por motivos de realização de outros projeto, o espetáculo ficou sem se apresentar, após este período, e retornou apenas em 2010, num projeto de comemoração de 10 anos da companhia.
Mas por qual motivo retornar com este espetáculo?
O que mostra-se como fator de grande importância é que “Silêncio” trouxe uma concepção de corpo que, até aquele momento, não tinha sido ainda proposto em nenhum trabalho da companhia. Foi em “Silêncio” que entrou, pela primeira vez, a improvisação como processo vivenciado em cena e não apenas como processo criativo em sala de aula. A relação com tempo dava-se de uma outra forma que não era pela contagem de ritmos compassados de uma música. A utilização da luz aparece em cena como diálogo e não como elemento de “climatização”, até mesmo pela sua própria materialidade, ao trazer os refletores para dentro do palco, aproximando os equipamentos de luz dos próprios bailarinos. O aparecimento de movimentações extremamente lentas e mínimas, chegando à presença de um bailarino que permanece, durante todo o espetáculo, fixo em um ponto do palco, sem estar em movimento, mas “entendido” também como dança.
Os integrantes percebiam na remontagem que, mesmo com o intervalo de tempo de seis anos, ali tinham questões que ainda impulsionam novas criações na companhia. Nesse espetáculo o corpo artista dos integrantes toma uma consciência maior de suas potencialidades, interferindo diretamente na postura de bailarino e criador.
“O corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo. E o corpo artista é aquele em que aquilo que ocorre ocasionalmente como desestabilizador de todos os outros corpos (acionando o sistema límbico) vai perdurar. Não porque ganhará permanência neste estado, o que seria uma impossibilidade, uma vez que sacrificaria a sua própria sobrevivência. Mas o motivo mais importante é que desta experiência, necessariamente arrebatadora, nascem metáforas imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadoras de outras experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos (corpos e ambientes) mapeados instantaneamente de modo que o risco tornar-se-á inevitavelmente presente.” (GREINER, 2005: 122)
Trazendo a diferenciação que Greiner faz em relação ao corpo artista e outros corpos, percebe-se que em “Silêncio” as respostas corporais comunicam uma relação de mundo que entram em esferas que discutem, no próprio corpo, hábitos e novas proposições corporais, num estado que se expõe ao risco, ao desconhecido, como uma outra forma de construção de conhecimento. E, nesse espetáculo, percebe-se o quanto outros conhecimentos foram possíveis, por os integrantes da companhia terem levado a fundo as provocações originadas durante a criação.