Por Caio Lima*
Chamar a atenção para ouvir é desvelar a música. (Dedicado ao fantasma de Julio Cortázar)
Quando um absurdo qualquer, desses que transtornam o relógio do mundo, inaugurar uma hora vaga no seu dia, no lugar onde o seu corpo encontrar, experimente fechar os olhos por dez longos minutos. Se, durante os primeiros segundos, tal tarefa prometer dificuldade, talvez pela memória encardida do breu, convém imaginar que o ouvido é uma espécie ancestral de “scanner” que imprime as perturbações em forma de som no corpo. A partir do que é ouvido, aquilo que é corpo se faz possível perceber enquanto espaço. Portanto, há o que temer ao fechar dos olhos: o tilintar da presa, o grunhido da fera, o tremor dos ossos, o berro ecoando na caverna, silêncio. Considere o choro da criança ao despertar no quarto escuro. No entanto, assim como quem ergue do barro a casa de pedra, assim como a canção de ninar, forje uma atenção para os sons que prometem a percepção e permita-se atravessar o risco. O movimento é na força que se arrisca da potência e se desmancha por reinventar-se. E se, no meio do caminho, ultrapassado o abandono dos olhos, um momento desconfiar que a sua cabeça esteja viajando por cotidianas preocupações, não se deixe ausentar, pese os pés para voltar ao chão do ouvido. Lembre-se, como numa brincadeira, de sempre retornar à sensação. Respire sem o cabresto e não se esforce, nunca se esforce. Percorra o som com o cuidado, como se o corpo arrastasse pelo sólido pedregoso. E assim quando ouvir algo parecido com uma imensa mão gorda afundando as vozes da multidão no esquecimento, o berro agonizante de um mamute de aço, o passo desconfiado de um pardal. E quando a agulha se chocar contra o tapete de palha e lembrar o crochê da Vovó Ventura, e o cansaço de um velho soar como o espanto inelutável aridez da garganta. E quando o nariz se assemelhar ao instrumento de sopro, uma criança transformar-se em flautins dionisíacos e a paciência do asfalto em suportar todo o peso da cidade soar como peles em chamas. E quando uma tempestade fizer da terra o seu imenso tambor de guerra. E quando uma gota rasgar-se num estampido com o chão. E quando o seu coração se fizer escutar, a incerteza do estômago estiver a mugir e a gravidade do sangue revigorar. E quando o mundo, transbordando o irreparável, desvelar em ti a poesia, os dez minutos já deverão ter transcorrido e este inútil exercício chegado ao fim. Em seguida, abra os olhos discretamente para não assustar a polícia, e numa folha de papel descreva, imediatamente, aquilo que for possível.
* Este é o primeiro texto relacionado ao projeto “Audiodança: A ventura do som no corpo que dança”, manutenção de pesquisa da Cia. Etc. incentivada pelo Funcultura, em que abordaremos sobretudo o processo de escuta junto a investigação sobre o movimento e o som.