Por Marcelo Sena*

Desde que comecei a estudar música, aos 14 anos de idade, tentava fazer relações entre o que estudava e muitas coisas do que acontecia próximo a mim. A primeira tentativa, antes mesmo de iniciar esses estudos, foi querer relacionar as cores das teclas de um instrumento musical (uma escaleta com teclas multicoloridas) com as melodias que eu escutava nas músicas. A primeira que eu decorei foi Hey Jude, dos Beatles, canção que também foi a primeira a ser escrita por mim, a partir de um jeito que inventei para conseguir lembrar as notas/cores e duração de cada sopro. Eu já exercitava, criava e reinventava jeitos de conseguir dar conta de uma fome que eu tinha: a de apreender os sons. Quando entrei numa escola de música, para fazer piano, consegui acelerar toda a iniciação musical, pois já tinha sido iniciado por outro meios, como a escaleta, os sons dos passarinhos no Castelo Rá-Tim-Bum e de tanto cantar Balão Mágico e escutar os vinis de meu pai – uma coleção formada basicamente pelos cantores tropicalistas. Meu pai: um ótimo tocador de caixa de fósforo e de mesa de bar (daquelas de ferro). Minha mãe: cantava em muitos encontros de igreja. Em casa, até que ela não cantava muito, mas assobiava sempre, e conseguia fazer aqueles assobios de moleque de rua, superagudos e fortes; pareciam um tapa no ouvido.

E eu dançava… Em meus aniversários, sempre escolhia o lugar em que eu ia ficar dançando a maior parte da festa. Num dos aniversários, insisti que teria que dançar no sofá. E dancei a festa quase toda. Acho que a escolha tinha a ver com o impulso das molas do sofá que me empurravam para cima e para baixo quando eu dançava. Inventava cenários e coreografias sozinho para dar “meu show” e, quando minha irmã nasceu, eu com 7 anos de idade, sabia que ela seria minha partner. Poucos anos depois de seu nascimento, eu ensinava para ela as coreografias e dava aulas de música. Tudo isso era extremamente prazeroso para mim. Não fiz aulas de música até os 14 anos, nem de dança até os 19, e acho que isso me permitiu viver de outro jeito o desenvolvimento de minhas percepções dessas duas artes.

Com a pesquisa Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, as metáforas de cruzamento entre essas artes são evidentes no título, mas também na nossa pretensão de encontrar relações entre corpo e som, dança e música. Se, de acordo com a física quântica, tudo, de certa forma, é onda e está em movimento, poderíamos abandonar uma possível exclusividade entre dança e música ao colocarmos a dança como movimento e o som como vibração. Os dois se encontram em muitas possibilidades, mas o que não podemos deixar de perceber, superficialmente, é que a dança tem um fator visual muito forte, enquanto o som tem o fator auditivo muito forte. E aí está uma grande armadilha.

Perceber o mundo em nossa volta não se dá de forma isolada, por sentidos específicos, separados. Estamos o tempo inteiro com todos os sentidos aguçados; alguns mais, outros menos. Inclusive, gostaria aqui de não partir da possível diferença entre pessoas com ou sem deficiências visual ou auditiva. Prefiro pensar nesse texto que, de certo modo, podemos ter extremas deficiências em nossos sentidos sem que percebamos. Para mim, encontro um modo de entender o que muitos autores querem dizer quando escrevem livros e desenvolvem técnicas com métodos de aguçar ou despertar nossas percepções para tantas coisas nesse mundo. John Cage viveu nos ensinando a escutar o silêncio, para perceber o quanto de som há onde não percebíamos; Murray Schaffer, com seu mapeamento dos soundscapes (traduzidos grosseiramente como paisagens sonoras), nos mostrava o risco de nos tornarmos insensíveis para os sons que nos atingem; a história contemporânea da música ocidental nos mostrou o quanto estávamos cercados por conceitos estreitos e radicais no que se refere a possibilidades de composição musical, tanto em relação ao oriente quanto a outras culturas do próprio ocidente consideradas “primitivas”.

Na dança, através dos códigos vigentes e repassados de geração a geração da dança teatral, mais conhecida e difundida pela técnica do balé clássico, também é grande o número de pessoas importantes que nos alertaram acerca da relatividade de pensamentos como o de querer unificar toda a dança a partir de um único modo de dançar. Começaram a repensar não apenas os códigos corporais, mas a própria ideia de arte em vigor que legitimava determinada dança e determinado corpo. Merce Cunningham, mesmo mantendo elementos próximos dos códigos corporais visuais do balé, buscava subvertê-los a partir de diversos recursos como o embaralhamento de sequências e criações isoladas de elementos de cena (como a música, figurino, cenário) que só se encontravam no momento da apresentação final. Inspirado na filosofia zen budista, buscava muitas vezes lidar com o acaso na composição coreográfica como meio de aproximar os bailarinos do risco e imprevistos que caracterizam o tempo presente. Na Judson Dance Theater, nos EUA, artistas como Steve Paxton colocavam o improviso e o contato direto entre os bailarinos como a estrutura principal para que algo acontecesse em termos de movimento, mas também como um modo diferente de perceber o ato de performar.

Ao mesmo tempo em que eu vou apresentando todas essas questões relativas a estas duas artes, vou tentando buscar aqui, enquanto escrevo, a possibilidade de ir encontrando palavras para chegar a um lugar, um pouco, mas não tão, diferente do que estou dizendo até agora. E vou me deparando com teclas no computador, que vão se misturando com os movimentos das minhas mãos e dos meus olhos e, sem me dar conta, vou olhando, às vezes, a tecla; às vezes, a tela, sem saber necessariamente se o que pressiono é o teclado do computador, letras visíveis na tela ou se estou acionando áreas de linguagem em meus pensamentos. Mesmo sendo letras, vou criando imagens, vou fazendo as palavras dançarem, e os sons das teclas me impulsionam a querer teclar mais rápido, mas também acelerar e desacelerar entre uma letra e outra.

Aqui, metaforizo o ponto em que queria chegar anteriormente: as nossas percepções vão se misturando sem nos darmos conta. A gente vai vivendo tudo junto; e vai dando nomes às coisas que não são tão separadas; vamos escutando letras e vendo sons se materializarem sem desconfiar da complexidade que o corpo tem como experiência no ato de estar presente e, consequentemente, perceber e ser percebido.

Em todos esses meses, durante a pesquisa Audiodança, essa sensação voltava: acho que audiodança é mais um modo de perceber do que necessariamente um “resultado híbrido” entre dança e música (ou corpo e som). À medida que íamos tentando elaborar roteiros, esboçar reflexões ou imaginar relações com outras artes, eu me percebia desconfiado quanto ao ato “puro e determinante” de compor ou conceituar audiodança. Encontros riquíssimos com Fran Barros e Conrado Falbo foram fundamentais para repensar a ideia de “conceito” como “território” e de “percepção” como algo isolado ou unidirecional. E, de certa forma, eles estavam dizendo muito do que discutíamos e do que temos criado na companhia. Não nos preocupamos com as fronteiras do território da dança, mas encaramos o nosso fazer como um ato de dança, o que nos coloca numa posição mais favorável a pensar no a-lar-ga-men-to do território da dança, e não, na invasão de territórios alheios e, consequente, apropriação deles. É de nosso território que falamos, apesar de visitarmos outros territórios; e não podemos fazer de conta que não fazemos essas visitas. Outros lugares e outras pessoas também vão fazendo com que ampliemos nossa subjetividade. E é daqui que percebo. E percebendo essas mudanças, mudo também o meu modo de perceber. A audiodança vai, nesse sentido, alargando a dança por meio de uma percepção que, muitas vezes, não nos damos conta. Perceber o quanto de som existe no ato de dançar e de assistir a uma dança, mas também o quanto de dança há nas diversas sonoridades que se organizam ou atingem pessoas dispostas a entender esses sons como composição. É fazer do corpo inteiro um corpo maleável, flexível e aberto a moldar modos de perceber.

Mais do que um substantivo, acho melhor pensarmos como um verbo, em que “audiodançar” é provocar e perceber corpo/dança no som/música, mas também o inverso: provocar e perceber som/música no corpo/dança. Sem ignorar a membrana que envolve os dois: o corpo, pois a dança e a música não acontecem em outro lugar que não seja nele.

* Texto escrito especialmente para o projeto de manutenção de pesquisa de grupo Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, incentivado pelo Funcultura e realizado entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015.