Por Caio Lima*

Audiodança é um lugar para o corpo, um caminho para perceber. Todas as proposições querem dizer aquilo o que ultrapassa o dito. São as proposições como aquedutos. O discurso está naquilo que se faz escutar: a estátua de mármore, o risco domesticado. Nesta magia de talhar o sensível, a palavra anima-se uma potência de recriar mundos.

O mundo é a impossibilidade de ser dito como tal, pois é desmesuradamente sensível. O que é possível do mundo em nós é a sua multidão de forças que colapsam numa memória, a multiplicação de formas do sentir que realizam-se corpo. Assim, toda proposição é fruto de um poder político que circunscreve no corpo um lugar para perceber. Não por acaso, a dança realiza-se dessas forças que revelam o corpo. Dançar é um borrão extático que redesenha sentidos. Pode, através da persistência de um consciente, que escapa ao fluxo e retorna em forma, uma memória do fluir.

Audiodança é uma proposição, um rasgo no escuro, uma brecha para um mundo. Quando se diz que a audiodança é um lugar para o corpo deseja-   -se evitar que o fim da audiodança seja produzir um corpo novo. A audiodança é, antes e ainda, um caminho que escuta de novo o corpo com mundos. É a demarcação de uma inquietude que pretende ver esse corpo-que-dança transtornado corpo-que-soa. Um relacionar-se com os sons até que eles dancem; um atravessar os sons como o que dança.

Aqui, abre-se à perspectiva do digital, que, através da gravação, edição e reprodução do som, permite e potencializa, dentro do universo dos simulacros, a produção e manipulação dos discursos. Essa aproximação da dança com a arte sonora é o desdobramento da questão sobre o movimento que ambas as intenções artísticas abordam: um problema de dizer através de gestos que não se perpetuam. Tanto o som quanto o movimento daquilo que dança findam sobre a força que o espaço constrange.

Portanto, o gravador digital é o que suporta a permanência de um gesto. E, na audiodança, o corpo é sonoro. O som é o que precisa ser detido, como órgão, para que o fluxo poético se refaça, infinitamente, do percurso que o movente inscreve através dos sons em que se enreda. Assim, atravessar e reter esse espaço, que é sonoro, é o que emerge dessa dança. A forma é o que resiste para deixar passar a enchente sensível. Essa inscrição do percurso do movente, através dos microfones, no gravador, é a fotografia da dança (sobretudo, o microfone Binaural que grava os sons a partir dos ouvidos simulando uma audição tridimensional assustadoramente semelhante ao aparelho auditivo humano). O que se move é o que permite adentrar o espaço. À medida que o dançarino se move, mesmo que decida parar, inscreve o espaço na superfície de quem o escuta. Assim, a forma da dança, para a audiodança, está no percurso poético-sonoro que pretende mover o ouvinte que repousa.

Então, é escutar um corpo em movimento para refletir um mundo de corpo. Deslocar um sujeito, o destinando ao ouvido do outro, movendo-se com o mundo. Habita uma esperança na audiodança que deseja perguntar-se sobre a separação Homem-Natureza a fim de criticar um corpo-consciência de cidade. Isto porque a audiodança, como potência de sentir, produz a impressão de que o mundo é muito; não há sujeito que o cinda. Quando escutamos por essa brecha inventada pelo microfone, por ser apresentada através dos sons, percebemos borrada uma normalizada cisão entre Sujeito e Mundo. Quando escutamos uma audiodança, viramos um corpo sonoro que não pode existir sem ser mar, vento sobre as árvores, grilos e pássaros, passos na areia, respirações.

Por isso, nomear Virando Mar, Virando Bicho, Virando Parque algumas das audiodanças que produzi. A questão é alojar na audiodança uma função não normativa, que produz, através de um percurso poético-sonoro, a percepção de estados corporais “descotidianizados”. Como uma respiração ofegante, desembocar e ser engolida pelo mar da Praia do Sossego ou o chacoalhar de um motor; distanciar-se para dar lugar ao vento, atravessando as árvores, ritmos de grilos e, na mata, escutar um humano relinchar feito cavalo.

Na audiodança, o corpo é no caminho. Os microfones são ouvidos. O movente, que é dançarino, impulsiona a sua redescoberta no tatear o sonoro que se refaz mundo. Imaginemos o dançarino da audiodança como um velho embebido de uma tesão juvenil, potente como o olhar devorador de uma criança. O velho arranha os ouvidos sobre as ondas, rasteja os joelhos sobre a areia, mergulha na imensidão de vibrar o sensível. Na audiodança, o dançarino atravessa um caminho e dedica um espaço ao corpo outro. E este foi o desafio de buscar uma audiodança: a possibilidade de dançar outro. Uma ampliação do questionamento da Cia. Etc. sobre o que posso dançar. Assim, a dança transfigura-se em vibração. O som está completamente implicado no poder dançar. E, então, tentar retirar da arte a obstinação de nomear as coisas e o mundo. A arte “desnomeia” as coisas, devolvendo o mundo para sua exterioridade absoluta. E a arte faz isso como vazão simples. A arte é o erro. A arte se realiza como processo de contágio. Portanto, voltemos ao início. Audiodança não persiste, é apenas uma proposição, um lugar para o corpo de agora.

* Texto escrito especialmente para o projeto de manutenção de pesquisa de grupo Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, incentivado pelo Funcultura e realizado entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015.