Um fato curioso na história do surgimento, consagração e estabelecimento do videoclipe como uma linguagem relevante na cultura mundial aconteceu o Video Music Awards, o VMA’s, prêmio criado pela MTV para exaltar o que foi feito de melhor no gênero audiovisual da qual o próprio canal dependia. Em sua primeira edição, em 1984, o júri secreto da MTV resolveu premiar ‘You Might Think’, da banda The Cars como o melhor videoclipe do ano. O clipe cheio de inovações técnicas e efeitos especiais, desbancou um dos clipes mais populares de todos os tempos: ‘Thriller’, de Michael Jackson. ‘Thriller’ chegou a ganhar o prêmio da audiência (o único escolhido pelo público), mas sua imensa popularidade não foi suficiente para ganhar o prêmio principal da noite.
No livro A Invenção do Videoclipe, de Ariane Diniz Holzbach, a autora discorre sobre as possíveis motivações dessa escolha. Uma forma de legitimação do videoclipe foi, por muito tempo, sua relação com o cinema e com a videoarte. Quanto mais reverencial ou mais próximo dessas linguagens o videoclipe fosse, mais “levado a sério” ele seria, em oposição aos clipes mais comerciais que não dialogassem com uma arte “séria”, sendo estes considerados pela crítica como inferiores. ‘Thrilller’ é um videoclipe longo, com uma narrativa próxima de um curta-metragem que faz uma homenagem ao cinema B e ao cinema de horror. Foi inclusive dirigido por John Landis, um cineasta famoso do gênero. Ou seja, ‘Thriller’ é um clipe que reverencia o cinema, assim como ‘Material Girl’ da Madonna (referência ao filme Os Homens Preferem as Loiras) e Radio Gaga, da banda Queen (referência ao filme Metropolis). Para Holzbach, esses clipes seriam pastiches do cinema.
Quando a MTV decidiu premiar o clipe da The Cars ao invés do clipe do Michael Jackson, eles estavam adotando um discurso decisivo para a formação do gênero: o videoclipe pode explorar suas referências e dialogar com outras linguagens, mas ele precisa estabelecer e valorizar a sua própria. As premiações do VMA, talvez o mais relevante evento de legitimação do clipe musical, foram essenciais nesse sentido ao abraçar elementos específicos da linguagem e suas tendências vanguardistas, como as categorias Melhor Vídeo de Conceito, Melhor Vídeo Experimental, Melhor Vídeo Pós-Moderno e Melhor Coreografia, mas sem perder sua relação com o mercado da música ao premiar videoclipes de acordo com o gênero musical ao qual pertencem (pop, rock, hip hop, r&b, dance).
No cenário atual, o videoclipe anda com suas próprias pernas na internet e está em constante reinvenção, independente da premiação da MTV, que já deixou de ser um canal de música há um bom tempo. O mais recente vencedor do prêmio de videoclipe do ano no VMA de 2018, ‘Havana’ de Camila Cabello, segue o formato de ‘Thriller’ de curta-metragem convencional, com duração estendida, narrativa, diálogos e personagens, seguindo um padrão dos grandes pop stars como Beyoncé e Lady Gaga, mas sem qualquer quebra de regras, complexidade estilística ou desafio para o público (a relevância do prêmio talvez esteja em respaldar uma artista de descendência cubana na Era Trump). Hoje a legitimação parece se basear em likes, visualizações e compartilhamentos, talvez com certa influência da crítica especializada (geralmente em música) online.
É interessante pensar em como o videoclipe e a videodança (e todo tipo de obra audiovisual) estejam tão acessíveis do público num mesmo patamar. A princípio, penso que isso produz certa desierarquização que pode colocar qualquer tipo de obra em alta visibilidade, e pode quebrar a ideia de que certas linguagens são mais ou menos legítimas que outras. Podemos assim enxergar as qualidades de uma obra através de suas qualidades artísticas e técnicas, uso das ferramentas audiovisuais, contexto histórico, intertextualidade e diálogo com obras de todas as linguagens, épocas e culturas. A questão que permanece comigo é: onde está e qual o papel atual da mediação? Algoritmo é mediação? Quem são os reais mediadores contemporâneos da cultura audiovisual? Seriam esses mediadores legítimos?
Filipe, eu sou a autora deste livro e adorei a maneira como você usou os argumentos dele em prol da sua própria reflexão sobre o videoclipe hoje. 🙂
Abraços!