Julho de 2006 . Crítica genética do solo O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES (2006), coreografado por Marcelo Sena e dançado por Arnaldo Rodrigues.
1- INTRODUÇÃO E APARATO TEÓRICO
Como achar os rastros da dança?
Um processo de criação coreográfica, até mesmo pela própria natureza efêmera e não palpável desta que é a mais universal manifestação artística, parece não se repetir nunca, recusando-se à sistematização, na maioria das vezes. Buscar os rastros deixados pelos criadores da dança no caminho dinâmico destas composições, mesmo sabendo tratar-se de um terreno flutuante onde o sensitivo e o intuitivo prevalecem, parece a única solução viável aos que buscam mais que a contemplação dos resultados.
Entender a dança como semiose(1), isto é, como ação ininterrupta de uma cadeia sígnica infinita de mediações, da natureza da continuidade. Onde imprecisão e indeterminação constituem o próprio arcabouço da sua lógica. Uma lógica que governa o processo de atualização de particulares que aqui focamos como uma dança. Olhar a dança como um resultado sempre transitório entre as condições neuroniais do movimento e a sua correspondência muscular. Pois que quando a dança lá está, ela está sendo dançada no e pelo corpo. A dança é sempre uma solista de si mesma. (KATZ. 2005- pág. 30 e 31).
O corpo é ao mesmo tempo matéria-prima, mídia, produto da dança; e o movimento, a sua escrita. Ver nesse corpo visível os significados invisíveis que os movimentos indiciam na dança é o desafio desta proposta, que mergulha no processo criador de uma coreografia, na tentativa de entender os porquês, para quês e senões deste fazer artístico através dos seus documentos de processo (2), “estudando as conexões dos vestígios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo e narrar a história das criações”.
Na dança, a imagem não permanece nem se fixa, mas se desenvolve como um rizoma que avança sem fronteiras, ao modo dos capins e da grama (…) o corpo cênico reorganiza o espaço como um prisma cristalino a partir dos seus eixos, em torno de um pivô, que muda de posição conforme a ação. Nesse espaço unificado, promove uma relação interpessoal e co-participativa em prol da produção de um sentido, interagindo com a presença viva do espectador, que afeta e é afetado pelos efeitos do cruzamento entre palco e platéia. O discurso corporal estrutura-se como linguagem simbólica pelo traçado interno das conexões psicofísicas no fundo sensível do corpo, revelando-as subjetivamente na superfície da forma, tornando visível o invisível.(MARTINS. 2003, nº 3, pág.34)
Este trabalho vem alongar nosso olhar para “os dentros” da coreografia “O Homem que amava rapazes”, composta pelo artista Marcelo Sena- baiano radicado em Pernambuco- dentro da edição 2006 do projeto O Solo do Outro (3). Para esta análise crítico-interpretativa na gênese de uma coreografia contemporânea, partimos de alguns conceitos da Semiótica Peirceana, perseguindo as possíveis verdades da obra.
A obra cria sua própria realidade dando a sensação de que o artista só cumpre ordens- afirma o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. Vamos, então, usar o conceito de verdade no plural. Sabendo que estas verdades surgem das próprias obras e que cada concretização de um determinado projeto do artista conterá suas verdades específicas, sempre falíveis e passíveis de múltiplos interpretantes, concluímos que cada processo criativo tem um percurso distinto, ainda que o criador seja o mesmo.
Estamos lançando-nos no terreno invisível das sensações e nas veredas “labirínticas” das possibilidades. Este processo investigativo das fases de desenvolvimento de uma criação artística e a busca da coerência, clareza e significação dela, se inicia no autor, e termina (se é que termina…) na interação com o espectador. No caso específico desta que é a primeira coreografia assinada por Marcelo Sena, há ainda o agravante de estar-se trabalhando com uma temática pré-determinada por um edital público e, com questões complexas e delicadas como a homossexualidade, o erotismo, os preconceitos, tabus e rótulos já implícitos em qualquer discussão ou abordagem envolvendo estes assuntos.
Trabalhar com criação artística não é somente prazeroso, é um ato de responsabilidade, porque implica escolhas, visões de mundo, princípios filosóficos e políticos, entre outras questões não menos relevantes. E exige também sutileza, porque o criador precisa ter uma sensibilidade refinada para que se identifiquem as novidades ocorridas diariamente num espaço não guiado por padrões estéticos ou de comportamento, mas invisivelmente costurado por valores dignos e consistentes. (4)
2- DESENVOLVIMENTO
2.1- Pontos de partidas
Nesta quinta edição do projeto O Solo do Outro, as propostas deveriam se enquadrar no tema Erotismo e o coreógrafo tinha que indicar um intérprete com o qual nunca tivesse trabalhado antes. Marcelo Sena escolheu o bailarino Arnaldo Rodrigues, para interpretar seu solo, que foca o homoerotismo masculino, apontando para o momento desta descoberta na vida dos indivíduos, todas as complicações e implicações daí originadas. “Eu já conhecia o trabalho dele na Compassos Cia. De Dança (5) e achei que ele tinha maturidade para interpretar, e também coragem de encarar, assumir um tema difícil como esse.”( 6 ).
De acordo com a reflexão da bailarina do Ateliê Coreográfico do Rio de Janeiro, Daniela Calichio (7), “o bailarino pode ser levado a tomar consciência de importantes questões que o cercam, ou mesmo a permanecer em estado de cegueira, objeto e não sujeito, dependente do diretor, do professor ou da instituição”.
Esta espécie de bailarino-soldado não interessa às coreografias contemporâneas, onde criador e criatura se fundem no processo, anulando a hierarquia tradicional, trocando de papel inúmeras vezes, ou acabando por assinar em parceria a composição, já que as partituras de movimentos evoluem durante os ensaios, que acontecem quase sempre em sistema de laboratório de criação, ou seja, no terreno da experimentação. Cabe ao bailarino o papel de intérprete, não mero reprodutor. E este intérprete tem o compromisso de ser meio, mensagem e conteúdo simultaneamente.
A primeira centelha desta criação de Marcelo Sena surgiu muito antes dele escrever a proposta para O Solo do Outro, precisamente em 2004, quando o amigo coreógrafo pernambucano Saulo Uchôa convidou-o para fazer parte do seu espetáculo Vermelho, no Ateliê de Coreógrafos (8), na Bahia.
A pedido de Saulo, fiz uma célula coreográfica sobre travestis e desde então fiquei com a idéia de explorar esse tema. A princípio, pensei em criar algo sobre sexualidade e comecei uma pesquisa independente, que direcionei ao tema Erotismo para propor este solo. (9)
Já há algum tempo que venho me perguntando o que faz com que certos homens sejam definidos como homossexuais apenas pelo seu gestual: pelo seu olhar, seu andar, movimentar das mãos, da cabeça, forma de sentar, dançar (…) É daí que veio a curiosidade de começar a saber de onde surgiram essas “imagens”, essas referências. Como se deu a construção desses códigos? Ao partir dessas impressões, este projeto vem propor uma pesquisa nesse campo, buscando nos arquétipos e também na construção cultural, o que delimita um comportamento homossexual masculino. (10)
Marcelo Sena buscou na literatura e no cinema suporte para sua criação, mas antes de qualquer coisa, bebeu na fonte das próprias experiências colaterais, quando da descoberta da sua homossexualidade. Entre os livros que subsidiaram sua pesquisa corporal estão: O homem que amava rapazes, de Denílson Lopes; A tradição secreta da jardinagem- padrões de relacionamentos masculinos, de Graham Jackson; O amor entre iguais, de Humberto Rodrigues; Androginia, de June Singer e Manual do Amor Gay, de Goldstone Stephen (11). Muitas foram as cenas cinematográficas “corporificáveis” que povoaram o imaginário do criador, mas na poética do que na forma. Neste elenco, destacam-se principalmente os filmes A Lei do Desejo (1987), do espanhol Pedro Almodóvar, e O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee.
Desde o princípio, Sena optou por não transpor literalmente para o palco, não “teatralizar” nenhum trecho da bibliografia, filmografia ou referências que consultou. Todas estas matrizes serviram apenas como aparato filosófico-ideológico para definir a linha de trabalho da sua criação, sem buscar em nenhum momento do processo, utilizar a função “retrato”, afastando-se do que se podia definir dramaturgicamente como autobiografia dançada ou adaptação literária.
Segundo Peirce, a única maneira de descobrir os princípios sobre os quais algo deve ser construído é considerar o que vai ser feito com aquilo que foi construído, depois que foi construído. Esclarecidos os paraquês da proposta coreográfica de Sena, resta-nos percorrer o “passo-a-passo” da construção, analisando as seqüências experimentadas pelo autor no corpo do intérprete, o bailarino Arnaldo Rodrigues, as formas resultantes que foram escolhidas e também as que foram abandonadas no percurso da criação.
2.2- Análise das Cenas
A experimentação está presente na maioria dos processos criativos e quando se trata de dança, o laboratório onde esta alquimia acontece são os ensaios, e, em última instância, os corpos dos bailarinos. No momento de concretização da obra, hipóteses de naturezas diversas são levantadas e vão sendo testadas.
Muitos séculos precisarão passar até que o corpo possa ser lido como uma arquitetura de processos. Um corpo simultaneamente estável e adaptativo, individual e geral. (…) Como evitar a dispersão de sentidos na tentativa de reconstruir o percurso entre o movimento-antes e a dança-depois? O exercício de trilhar sucessões sem hierarquias, sem consequencialidades, forçosamente produz conclusões ramificadas. Como ocorre na vida, os percursos, aqui, nascem, de escolhas entre roteiros plurais. Todos comungando na consciência do inacabamento do saber ensinada por Peirce. (KATZ: 2005- págs. 29, 30 e 31)
Como falar de erotismo com somente uma pessoa em cena? Como falar de homossexualidade masculina sem ser óbvio, caricato, preconceituoso? Fugir dos clichês, dos rótulos e estereótipos foi o primeiro grande desafio que se impôs ao coreógrafo.
Eu não queria falar de porquê o homossexual “dá pinta” ou coisas do gênero. Evitei a supervalorização do modelo gay-mega-star, de tudo que fosse exclusivo do universo boate, de gueto. Porque o que quero tratar nessa coreografia é basicamente do momento em que o rapaz se descobre sentindo atração por outro rapaz. E começa a se questionar. E agora, o que é que eu faço? O que isso me fere e o que fere a sociedade? (12)
Preocupado em se fazer entender, Marcelo Sena buscou apoio em objetos cênicos que pudessem simbolizar seus pensamentos e sentimentos, que pudessem reforçar a dramaturgia construída no corpo do intérprete. Lúcia Santaella, semioticista peirceana brasileira, diz que “todo pensamento se processa por meio de signos. Qualquer pensamento é continuação de um outro, para continuar em outro. Pensamento é diálogo. Semiose é, assim, também sinônimo de pensamento, inteligência, mente, crescimento, aprendizagem e vida”. Se esta autogeração de signos ad infinitum é o cerne da comunicação, sua velocidade acelera-se e sua amplitude se dilata quando estes pensamentos são impressos- expressos no corpo em movimento, ou seja, na dança, que é, como bem diz a pesquisadora Helena Katz, o pensamento do corpo.
Foi o acaso que acabou por oferecer ao coreógrafo os tais complementos significantes: um guarda-chuva tradicional preto, uma corda vermelha e calça jeans básica, que é também a única peça do figurino do bailarino.
Os objetos estavam na sala de ensaios, não trouxe propositadamente nenhum deles. Ainda pensei em colocar uns tecidos, espécies de cortinas no teto, para simbolizar a fase da descoberta onde o homossexual costuma se esconder, camuflar os desejos, mas o guarda-chuva já deu o efeito que eu queria e ainda servia de arma, para se defender das inevitáveis ameaças da sociedade. Então nem experimentei as tais cortinas. (13)
O guarda chuva, presente em 50% das cenas (parte inicial) do solo, também seria utilizado para fazer uma referência direta ao bailarino clássico, mas Sena preferiu não fazer uma abordagem com cenas muito explícitas, apesar de considerar forte a imagem construída em um dos laboratórios criativos do processo.
Rodrigues entra em cena, vestido com a calça jeans e escondido atrás do guarda- chuva preto. A corda, que está atada ao cós da calça, servindo como cinto, não aparece até inaugurar-se o segundo momento da coreografia. O guarda-chuva oferece força e tensão à poética do solo, em contraponto a sutiliza dos movimentos suaves e sugestivos, primeiro dos pés, em seguida das mãos do bailarino, em uma seqüência de prelúdio que transpira a sensualidade dos desejos contidos, onde pequenos gestos guardam grandes segredos e são, sem dúvida, índices do homoerotismo masculino, ainda que estejam longe de explicitar suas intenções.
Quando o bailarino sai da sombra do guarda-chuva, ele joga o objeto longe, abandonando-o até o final do solo. Deitado no chão, Rodrigues inicia uma série de posições de contração, ritmadas pelo som da sua respiração, que se acelera num crescente, fazendo referência direta ao orgasmo.
Sena chegou a incluir uma seqüência de movimentos com uma posição associativa ao parto, para referir-se ao momento da descoberta homossexual de um rapaz como nascimento, trazendo os arquétipos da psicologia junguiana ou até insinuando relações edipianas entre mãe e seus filhos homens.
A necessidade de marcar esta fase da descoberta fez o coreógrafo experimentar também uma partitura de quedas, onde o bailarino se jogava repetidas vezes ao chão até achar seu equilíbrio e verticalidade, mas ambas as células coreográficas foram descartadas sem nenhuma razão aparente, talvez guardadas para futuras composições, já que o coreógrafo pensa neste solo como o ponto de partida para um espetáculo maior, em duração, elenco e possibilidades.
“O homem que amava rapazes” põe em cena a androginia, tema recorrente nas criações de dança contemporânea. Este assunto era trabalhado com ênfase em uma seqüência específica, depois Sena preferiu permear toda a criação, expondo um vocabulário gestual onde a co-existência do feminino e masculino é onipresente. Com menos acento dramático, leva a androginia às vias do comum, banal e não como uma peculiaridade dos homossexuais. Realçar isto em uma cena poderia realmente prejudicar o conceito da coreografia. E, afinal, a calça jeans básica unissex carregada de simbolismo, muitas vezes encarada como ícone da juventude, da liberdade ou da igualdade entre gêneros, já cumpre bem a função de naturalizar e desmistificar esta questão.
Era uma seqüência com muitos movimentos que se repetiam, mas não chegou a ter ligação com nenhuma outra. Trabalhávamos a questão da sensibilidade, envolvendo os opostos do sutil e do grosseiro, como um esboço da representatividade do feminino e masculino. Não gostava muito do resultado estético, e o sentido acabou fugindo do restante da construção do solo e da pesquisa também. (14)
O acaso também inseriu a corda na composição, com o papel de reforçar o conceito geral da obra coreográfica e/ou fazendo uma analogia à função prioritária dela mesma, serviu para amarrar a coreografia, apesar de ser um signo múltiplo e ambíguo, por estar diretamente associado a ações contrastantes, muitas vezes opostas, como prender, soltar, puxar, pendurar, limitar, unir. Afinal, “de acordo com Peirce, o signo representa o seu objeto. Esta representação, todavia, não se dá plena e em completude. Porque é da característica do signo representar. Representar, não substituir.” (KATZ. 2005, pág. 21)
Em um dos primeiros ensaios, pedi que Arnaldo trouxesse uma célula coreográfica utilizando um filó e chegamos a criar alguns movimentos a partir daí. Mas em seguida, algum dos moradores da casa dele levou o filó emprestado e nunca mais trouxe de volta. Ele resolveu improvisar com uma corda de sisal e eu gostei muito do resultado. Como Arnaldo se machucou durante os laboratórios iniciais, substituímos a corda de sisal por uma de material sintético vermelha, por toda representatividade e força desta cor. Criei uma seqüência em que Arnaldo ficaria pulando corda, enquanto falava alguns textos em que ele confessava momentos de descobertas sexuais. Depois achei desnecessário. Ficava muito explícito. (15)
A corda, no entanto, dá origem a várias frases da partitura, estando presente em cerca de 60% da coreografia. Primeiro se desenrolando da cintura do bailarino e deixando no chão do palco um rastro vermelho, para nos remeter intencionalmente ao sangue, e mais uma vez, nos deixar de cara com a dualidade, podendo, entre outras coisas, significar tanto a vida como a morte.
Antes da soltura total da corda, Rodrigues expõe-se emaranhado na teia vermelha, mudando lentamente de posição e fazendo nascer da composição corpo-corda-luz, diferentes esculturas, imagens “cinematográficas” prenhes de significados.
O coreógrafo aventura-se à interatividade, mesmo sabendo dos perigos embutidos na tentativa de inclusão ativa do público em uma criação artística. Enquanto o bailarino segura uma das pontas da corda já desenrolada, a outra ponta é entregue a um dos espectadores masculinos, que, quase sem sentir, começa um jogo onde a corda ondula-se no chão. Aos poucos a velocidade vai aumentado até atingir o ápice e ser lentamente recolhida pelo intérprete, que finaliza a coreografia guardando-a, e caminhando para fora do palco. Mais uma vez, Marcelo Sena, faz referência ao ato sexual entre homens, desta vez imprimindo, em um jogo lúdico, ingenuidade e naturalismo, que beira à banalização, chamando atenção para a normalidade do homoerotismo masculino. Como se reafirmasse a todo momento: Isto existe. Isto é natural, normal!
3- CONCLUSÕES
Sena quer provocar, questionar, instigar as discussões sobre o “homoerotismo entre homens” (16). A única transcrição realizada por ele foi o título do solo, homônimo ao de um dos livros da bibliografia pesquisada: O Homem que amava rapazes. Mas o batismo da coreografia só aconteceu uma semana antes da estréia, assim como outras decisivas questões do espetáculo, o que revela o caráter dinâmico e inconstante do estilo de Marcelo Sena compor. Será que isso nos faz classificar o solo primogênito de Sena como uma performance? Sim e não.
Se enxergarmos a performance como encenação do improviso não podemos enquadrar aqui “O homem que amava rapazes”, pois o acaso interferiu apenas durante o desenvolvimento da coreografia, tornando-se partitura fixa antes da estréia ao público, ainda que o criador admita modificações no decorrer da temporada, elas estarão longe do campo da improvisação. Mas se considerarmos que “a efemeralidade e a impossibilidade da reprodução do todo como características das performances ou ações artísticas que lidam com o eixo tempo-espaço com espectadores ou testemunhas presentes” (17); esta coreografia tem sim um “quê” performático. Vamos, então, colocar a criação de Sena no terreno artístico expandido, ampliando os seus limites.
A predileção por um vocabulário imagético denuncia o gosto pela arte da fotografia e do cinema, inclusive como forma de registro e rascunho. Os documentos de processo são, na maioria das vezes, visuais. Sena costuma fotografar, gravar em vídeo os ensaios e apresentações das suas coreografias e também são imagens, que alimentam sua criatividade. Além disso, a execução em câmara lenta da grande maioria dos movimentos, o detalhismo e a formação de esculturas estáticas, contornadas pelo primoroso desenho de luzes de Saulo Uchôa, revela o perfeccionismo e as tendências estéticas, de cunho predominantemente visual, do coreógrafo, cujo processo criativo chega a se assemelhar muitas vezes ao de um artista plástico, tal é a preocupação com cores, traços e formas.
Este diálogo com outras linguagens marca a produção de Marcelo Sena, de um lado porque a contemporaneidade transpôs as fronteiras entre os fazeres artísticos e as gavetas não servem mais para definir as obras e seus percursos. De outro lado, porque Sena já é um espelho da insterdisciplinariedade, atuando constantemente e às vezes simultaneamente em espetáculos de dança, música, teatro, performances, instalações.
Com vasta experiência em composição de trilhas-sonoras para dança e teatro, Sena começou os ensaios, pensando em inserir as músicas e outros sons posteriormente, como é visível na proposta escrita que enviou à curadoria do Centro Apolo Hermilo.
Partindo dos mesmos questionamentos da obra coreográfica, a trilha sonora parte também de músicas e sonoridades identificadas como clichês de um universo homossexual masculino.
Apesar de querer trazer para a cena essas referências, a trilha sonora terá como desafio remodelar essas músicas e sonoridades, não revelando-as em sua íntegra, mas mixando e pontuando trechos durante a coreografia, mas dentro da criação de uma trilha sonora original, que será composta pelo próprio coreógrafo. (18)
Pensei em colocar batidas de Dance Music, por causa do universo das boates, e alguns sons de filmes pornôs de homens transando também. Depois achei que não era por aí e fui buscar outra coisa. Enquanto isso, fui ensaiando sem trilha sonora e agora acho que a música só iria atrapalhar. (19)
Sete dias antes da estréia do espetáculo, Sena ainda admitia a hipótese de incluir uma trilha sonora no solo, mais acabou optando pelo silêncio, interrompido apenas pela respiração ofegante do bailarino em determinado momento da coreografia. Esta ausência sonora incômoda para os mais cartesianos, poderia ter ganho algumas gotas musicais contundentes para pontuar melhor as intenções do coreógrafo, mas ele nem chegou a experimentar tão inclusão e preferiu não arriscar.
Sempre no terreno das dicotomias e da tensão entre a necessidade de atacar para se defender e o desejo incontrolável de vivenciar plenamente sua sexualidade, o intérprete transita entre o esconder-se e o revelar-se. Durante os vinte e cinco minutos da apresentação, um clima reticente leva o espectador a uma surpresa atrás da outra, podendo inclusive frustrar as expectativas mais profundas ou ousadas de alguns. A preocupação excessiva em fugir de um gestual clichê, do lugar-comum, acabou resultando em um repertório reduzido de movimentos em todo o processo, deixando os mais ávidos, famintos por uma dinâmica mais elaborada ou menos minimalista.
Olhando atentamente as escolhas de Marcelo Sena, notamos que não é somente a afetividade e o gestual que interessam ao coreógrafo, ele estabelece a relação destes elementos com o exercício de cidadania, o posicionamento político dos homossexuais masculinos, num discurso mais insinuante do que objetivo. Apesar de não assumir o viés psicológico como eixo da composição, em seu processo de criação predomina o trabalho a nível inconsciente, na zona da memória afetiva e das experiências colaterais do intérprete, para gerar movimentos naturais, como explica o pesquisador português José Gil:
A comunicação inconsciente dos corpos na dança induz uma certa relação com a consciência que difere da que um corpo supõe em situação normal. Digamos que na posição de vigília habitual, a consciência controla (ou crê controlar) o sentido e o comportamento do indivíduo. É o contrário do que se passa na dança: aqui, o inconsciente do corpo ganha uma força que subjuga a consciência pura de si. Ora, esta inversão da ordem da subordinação representa a própria condição do nascer do movimento dançado. É necessário que a espontaneidade, a vida, a fluência do movimento possam jorrar e desabrochar; e a consciência de si constitui sem dúvida um sério entrave ao desenvolvimento do movimento. (…) o movimento é dançado quando a ação exterior é subordinada ao sentimento interior.(GIL. 2004, pág. 127)
“O homem que amava rapazes” abriu várias portas, sempre de “dentro pra fora”. Possibilidades coreográficas diversas, por vezes contraditórias, mas nunca excludentes, foram se apresentando durante o processo e o criador tentou armazenar todas as informações, registrando as seqüências e catalogando-as como células para futuros desdobramentos, sem querer perder nem um único gesto.
O primeiro solo de Marcelo Sena aponta para uma linha de ação exclusivamente não-verbal, onde prevalecem o discurso psicológico, a linguagem icônica-imagética e o uso de objetos simbólicos, além é claro, da movimentação naturalista sem matrizes corporais “técnicas” nítidas. O acaso é utilizado como instrumento de composição e os experimentos tentam evitar todos os rótulos. Mas como esse é o primeiro trabalho assinado pelo coreógrafo, pode ser que a tendência não se confirme, só o tempo dirá. Antes de dizer de si, Marcelo Sena, quer testar as inúmeras possibilidades que lhe saltaram nesta primeira incursão. Sua dança pede licença para não ser, para “estar entre” e só então poder dizer-se.
A dança como um lugar onde tudo se move tão rapidamente que, num primeiro olhar, só conseguimos nos dar conta dos seus efeitos, não da sua consciência. Dança como fenômeno singular. Dança como uma propriedade que brota da coleção das partes sem reducionismo, um algo-que-não soma-das-partes. (KATZ. 2005- pág. 26 e 27)
4 – NOTAS DE REFERÊNCIA
1- Semiose é um dos principais conceitos instituídos pelo lógico e filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839- 1914) e consiste no processo de autogeração de signos. A Semiótica Perceiana , de forma resumida, pode ser entendida com uma teoria geral de signos, cuja tarefa é desvendar o que são e como operam os signos e, por meio deles, o próprio pensamento e, conseqüentemente, os modos pelos quais podemos compreender as coisas.
2- Todos os registros (anteriormente chamados de manuscritos) de um processo de criação artística são aqui denominados documentos de processo. Neste caso específico, foram analisados a proposta escrita do coreógrafo concorrente ao edital público do projeto O Solo do Outro; os trechos da pesquisa literária realizada pelo coreógrafo; fotografias e filmagens de ensaios, incluindo cenas que não foram utilizadas na montagem e a versão final que foi apresentada ao público, durante o mês de julho de 2006.
3- Apesar da dança ser uma prática cotidiana no Recife, são poucas as ações de fomento destinadas aos criadores de dança, o que afeta diretamente a quantidade e qualidade das produções locais. Neste cenário de escassez, o projeto O Solo do Outro, do Centro de Pesquisas Apolo Hermilo, da Prefeitura da Cidade do Recife, implementado há cinco anos, vê sua importância amplificada pelo fato de ser a única ação consolidada de incentivo a criação em dança contemporânea.
4- Frase de autoria da bailarina , integrante do grupo profissional do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, extraída de uma entrevista dela publicada no nº 3, da Revista Gesto (dezembro, 2003).
5- A Compassos Cia de Dança é um grupo profissional independente do Recife, trabalhando há 15 anos com dança contemporânea.
6, 9, 12, 13, 14, 16 e 19- Trechos da entrevista concedida pelo coreógrafo Marcelo Sena, durante os ensaios do solo “O homem que amava rapazes” no mês de junho de 2006, para elaboração deste trabalho acadêmico.
7- A carioca Daniele Calichio é bailarina e atuou no hoje extinto grupo profissional, formado por 15 bailarinos do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, entre 2002 e 2003.
8- O Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, seleciona criadores de dança para uma residência temporária na Bahia, objetivando desenvolvimento de pesquisas e concepção de novas montagens coreográficas. Com esta proposta de residência, eles desejam contribuir para o surgimento de coreógrafos e intérpretes que representem e solidifiquem o estilo e o conceito da dança contemporânea de raízes brasileiras, na história da dança universal do século XXI. Ver mais informações no site oficial do projeto, em www.ateliedecoreografos.com.br .
10 e 18- Trechos da proposta coreográfica, que Marcelo Sena enviou à curadoria para concorrer ao projeto O Solo do Outro.
11- O coreógrafo Marcelo Sena forneceu uma lista com trechos dos livros consultados, mas ele não sublinhou nem inspirou-se especificamente em nenhum dos trechos, servindo esta leitura apenas como instrumento para compreensão da concepção geral da obra coreográfica e seu processo criativo.
17- Definição de performance extraída do artigo Palavras em movimento, Nova Dança 4 e outros trânsitos, de autoria do profº Fernando Pinheiro Villar, publicado no nº 06 da Revista Lume, da UNICAMP.
5 – BIBLIOGRAFIA
5.1 – Livros
CERBINO, Beatriz- História da dança: considerações sobre uma questão sensível. Lições de Dança, Rio de Janeiro, n.5, UniverCidade Ed., 2005.
LOUPPE, Laurence- A poética da dança contemporânea. Tradução: Gustavo Ciríaco. Lições de Dança, Rio de Janeiro, n.2, UniverCidade Ed., 2000.
KATZ, Helena- Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo, Minas Gerais, FID. Editorial, 2005.
GIL, José- Movimento total:o corpo e a dança, São Paulo, Iluminuras Ed., 2004.
SANTAELLA, Lucia- A Teoria Geral dos Signos- Como as linguagens significam as coisas, Editora Pioneira- 2004
5.2 – Periódicos, trabalhos acadêmicos e outras fontes:
Revista BRAVO, Ano 9- n.104, Ed. D’Avila sob gestão da Ed. Abril, Abril de 2006
Revista GESTO, números 2 (junho) e 3 (dezembro), Editora do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, Secretaria das Culturas/RIOARTE, 2003
Revista do LUME, número 6, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, 2005
SIQUEIRA, Arnaldo. Aspectos da dança contemporânea do Recife (1988-2002). Salvador, 2002. Dissertação de Mestrado/ Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Dança e Teatro- Universidade Federal da Bahia- UFBA (mimeo).
Participação no Workshop CRÍTICA DE DANÇA, ministrado por Roberto Pereira no X Festival de Dança do Recife, 22 e 23 de outubro de 2005.
Participação no Seminário O QUE É DANÇA CONTEMPORÂNEA? ministrado por Thereza Rocha, no I ReciclARTE, 28 a 31 de janeiro de 2006.
Entrevistas com: Marcelo Sena (coreógrafo) e Arnaldo Rodrigues (bailarino), em junho de 2006.
Muitooo Ruim