Por Elis Costa*

Nós últimos dias, por motivações pessoais (quiçá, pela proximidade do fim do ano), tenho me debruçado com atenção sobre o trabalho que estamos, atualmente, desenvolvendo na Cia. Etc. Na verdade, minha atenção e reflexão têm se voltado, especificamente, para o nosso funcionamento, escolhas, caminhos traçados (e, especialmente, os não traçados!) como companhia. Em meio a anotações corriqueiras (coisa de quem já coleciona memórias encurtadas pelo tempo) e cópias de trechos de livros (as quais me ajudam a compreender nossa tarefa como artistas e cidadãos ou que me ajudam a complicar ainda mais o que supunha antes ser verdade), estavam essas palavras organizadas por mim, que transcrevo abaixo:

Esse panorama internacional do percurso artístico e político, percorrido pela dança contemporânea nas duas últimas décadas, nos ajuda a localizar o seu lugar hoje na arte e no mundo, e também a identificar características dessa prática entre alguns artistas independentes e agrupamentos de artistas atuantes na capital pernambucana, como a Cia. Etc., companhia que encontra poucos pares no contexto nacional. Fundada em Sergipe, em 2000, e sediada no Recife, desde 2004, a Etc. é reconhecida hoje no meio artístico pernambucano pelas criações desenvolvidas sempre a partir de uma pesquisa continuada e mediante a contribuição e contaminação das diversas linguagens artísticas. Definindo-se como um espaço de estudo e de troca de aprendizado entre artistas, a companhia se afina com o pensamento de dança contemporânea elucidado[1], e também com as questões que tocam a própria organização estrutural dos grupos e atuação política dos artistas. .Diferente de grande parte dos grupos de dança brasileiros, a Etc. apresenta uma forma horizontal de organização, assim como a inclusão, na companhia, de profissionais de diferentes áreas artísticas e de experiências diversas com a prática da dança. A ideia de patrão, vinculada especialmente à figura do diretor (que geralmente também acumula a função de coreógrafo) foi praticamente abandonada pelos seus membros. A função do diretor existe, mas num mesmo grau de hierarquia que a do bailarino, ou ainda do produtor, do músico, do cineasta. A coreografia, nas suas últimas produções, foi assinada coletivamente. A presença desses profissionais de outras artes na formação do grupo, já que a Cia. Etc. parte sempre das questões da dança para conduzir seus processos criativos, poderia levar à ideia de uma escala, uma gradação, uma classificação de importância das linguagens artísticas dentro da sua estrutura, o que também não acontece. Esse entendimento paritário é evidenciado nas próprias produções sistemáticas da companhia tanto em vídeo (videodança), quanto em áudio, mais recentemente (audiodança e podcasts), para além dos espetáculos. (Eu mesma, esse ano de 2014, num pedaço de papel qualquer).

Norberto Bobbio, filósofo político italiano que venho aprendendo a gostar, numa de suas obras mais conhecidas (A Era dos Direitos), assim falou sobre a esfera política que atravessamos:

[…] a relação política por excelência é a relação entre governantes e governados, entre quem tem o poder de obrigar com suas decisões os membros do grupo e os que estão submetidos a essas decisões. Ora, essa relação pode ser considerada do ângulo dos governantes ou do ângulo dos governados. No curso do pensamento político, predominou durante séculos o primeiro ângulo. E o primeiro ângulo é o dos governantes. O objeto da política foi sempre o governo […]. O indivíduo singular é essencialmente um objeto do poder ou, no máximo, um sujeito passivo. Mais do que de seus direitos, a tratadística política fala de seus deveres, entre os quais ressalta, como principal, o de obedecer às leis. Ao tema do poder de comando, corresponde – do outro lado da relação – o tema da obrigação política, que é precisamente a obrigação, considerada primária para o cidadão, de observar as leis. Se reconhece um sujeito ativo nessa relação, ele não é o indivíduo singular com seus direitos originários, válidos também contra o poder do governo, mas é o povo em sua totalidade, na qual o indivíduo singular desaparece enquanto sujeito de direitos. (2004, p. 54-55).

Mas por que danado mesmo eu estava falando sobre isso? Ah, sim! Para falar da Etc. Não para associar esse pensamento político de que fala Bobbio a nossa prática, reforçando o lugar privilegiado de um suposto governante (digo suposto porque esse lugar é periodicamente extinto dentro da companhia – e digo periodicamente porque esse é um exercício diário e difícil), mas justamente o contrário: para reforçar aquilo que rascunhei e que aqui registrei antes de citá-lo sobre nosso esforço de horizontalizar as relações, seja entre os componentes da equipe, seja entre as diversas áreas artísticas nas quais transitamos, levados pela dança.

Se fôssemos fazer uma grosseira comparação, para melhor ilustrar o que quero dizer, estaríamos, hoje, na Etc., muito mais próximos de um Estado de direito, ainda segundo Norberto Bobbio. Para ele, “no Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” (2004, p. 58). Em outras palavras, a título de comparação, hoje, na Etc., seríamos todos – bailarinos, coreógrafo, cineasta, músico, produtor, diretor – cidadãos. Hannah Arendt, outra filósofa política, alemã, em seu livro A origem do totalitarismo (lembro quando vi pela primeira vez esse título, antes de ler o livro, e tudo que ele me fez imaginar…), diz que cidadãos são todos aqueles sujeitos que se reconhecem como parte de uma comunidade disposta e capaz de lutar pelo direito de todos, inclusive o direito de ter direitos. Delícia isso, né?! Uma curiosidade fofa: no FourSquare e no Instagram, nossa sede está registrada como República Etc. E outra, mais fofa ainda: ela fica na Rua Cuba.

Tá, mas a essa altura você já deve tá se perguntando o que danado tudo isso tem a ver com audiodança. Sinceramente? Nada. Ou, como audiodança não é algo dado, um fim em si, mas depende necessariamente da percepção[2], tudo. Lembra que falei um pouco mais ali em cima do nosso esforço de horizontalizar as relações? Pois bem, é isso que me interessa conversar aqui, e todo esse povo que eu chamei para junto veio somente pra me dar um apoio moral. Melhor: um apoio ético.

O que nos interessa, hoje, na Cia. Etc. é contemporizar a própria estrutura da companhia, para que essa prática e esse pensamento estabelecidos em nossas relações inundem também nossas criações, e recrie nossa dança. Isso, no entanto, não é nada recente dentro do grupo, inclusive vai além das questões interpessoais e profissionais, e cruza nossos atravessamentos nas diversas áreas artísticas que a dança nos proporcionou conversar. Foi assim com o vídeo. É assim, agora, com a música – que nos abriga e nos permite o que estamos chamando de audiodança.

Não se trata simplesmente de uma questão de apoderar-se de novos espaços, alargar fronteiras ou passear entre áreas diversas a fim de construir um produto misto, místico, misterioso, multifacetado. Nada disso. Ou tudo isso também. Mas a intenção primeira é, antes, reconhecer os encontros e desencontros desse abraço, de olhar para o diferente, misturar-se com o que não somos para nos reinventar, para reconfigurar o nosso entendimento de dança. Não é invadir: é ocupar. É um mergulho em si mesmo no mar alheio. Isso é, antes de tudo, político. Sendo artístico, claro. E diz respeito a toda essa nossa tentativa de modificar as relações de cargos e funções no nosso cotidiano, de quebrar qualquer hierarquia entre nós (a dança) e as áreas artísticas com as quais dialogamos e, sendo assim, entre nós e o mundo.

Audiodança, para mim, é esse caminho de subversão, de transgressão, de travestimento da dança em outra dança – maior, mais inclusiva e mais condizente com qualquer coisa que a gente pense ser a contemporaneidade. Um ato de encontro e desencontro. A desestabilidade em que, atualmente, me permiti residir, bailarina há 23 anos. Audiodança é um acordo com o outro, na medida em que disponibiliza para ele (o qual pode ser você, que está me lendo agora) a decisão sobre a pertinência, ou não, da nossa dança, na medida em que compartilha com ele (você) a decisão do movimento, a existência da dancidade (estado de dança), a experiência do corpo em outra instância – seja ela qual for. É, sobretudo, um ato de amor. Não aquele romântico. Um amor pós-moderno, porém, essencialmente, contra-hegemônico, revolucionário. Aquele que se reconfigura para resistir, para permanecer, para continuar a existir. O único amor possível em tempos como os de hoje. Ao menos, o único que me interessa.

[1]          Para quem tiver curiosidade, o pensamento de dança contemporânea a que me refiro é o presente no livro de Dani Lima, Corpo, política e discurso na dança de Lia Rodrigues (2007), entre as páginas 49 e 51. Este trecho, cuja referência disponibilizo aqui, estava também transcrito no meio de minhas anotações, abrindo o pensamento que tracei e que acima eu trouxe para apreciação. No trecho Lima cita as pesquisadoras Isabelle Ginot e Marcelle Michel e seus pensamentos sobre a direção em que está tomando a dança no século XXI.

[2]   Dá uma olhadinha no texto de Marcelo Sena que você vai entender melhor esse lance de percepção. O texto chama “Audiodançar”.

* Texto escrito especialmente para o projeto de manutenção de pesquisa de grupo Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, incentivado pelo Funcultura e realizado entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015.